"O maior risco da vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e pois penado, ainda que seja amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo desesperado de favor?
(...)
Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem querela."
Gil Vicente in O velho da horta, (1508-1515).
Sunday, October 26, 2003
Saturday, October 25, 2003
Considerando...
Ossos do ofício -
Disse Cora Coralina, anos e mais anos atrás, eu era menina, nem entendi direito, que escrever era um sofrimento, uma tortura, e que ela própria não gostava de escrever. Mas, era mais forte que ela. Era um "es muss sein" de sua vida. E sendo assim, não há escapatória. Portanto, ela obedecia o algoz da escrita, e derramava suas linhas. "Ela é uma poetiza", dizia minha mãe, "transforma o triste em bonito, não em alegre, mas faz surgir beleza onde só havia dor".
"Amor volat undique"
A única coisa que ainda me surpreende é essa capacidade masoquista que a gente tem de amar qualquer coisa. Qualquer poça d'água de chuva que molhe nosso sapato novo é objeto de amor, porque de alguma forma tocou nossa vida. Não tenho nada no peito, sequer um soprinho tímido de ar ecoando no oco do meu tórax, e ainda assim, brota ali, na secura, um amor frutífero, frondoso e verde, um oásis na aridez solitária da alma. Verde de insistência, eu diria, não de esperança. Amor não dá esperança nenhuma. O Amor atira a gente do precipício da existência e nos dá a consciência triste do chão duro, de dar com a cara no muro, na porta, de dar murro em ponta de faca. E quebrados em mil pedacinhos, nossa vida, um caos, no fundo do poço, o que nos dói é somente o coração na presença da grandiosidade e da perfeição incompreensíveis de qualquer amor.
Pra não dizer que não falei das pérolas...
Sempre penso na concha teimosa que, cuspida pela maré, agarra-se ao restinho da correnteza e volta lá pra dentro do oceano. Porque é só isso que ela conhece e ama incondicionalmente. Apesar de nunca poder conhecer por inteiro o mar, ela se joga novamente pra dentro da imensidão e continua buscando o seu destino. E o mar, comovido, toda entrega incondicional é fatal, envolve a concha, também amoroso e, em resposta, continua empurrando-a pra areia, tentando mostrar-lhe o outro lado, desafiando-a a permanecer consigo nas incertezas da maré, nas correntes inconstantes, no meio do desconhecido. A concha sabe que viver é assim, é assumir todo risco, não adianta ter mapa, nem guarda-chuva, nem remédio pra dor de cabeça. É uma sucessão de ondas místicas e calmarias efêmeras. Mas, só assim, ganha-se o direito às pérolas.
Certo ou duvidoso?
Essas certezas que a gente acha que tem na vida, tudo mentira. Tudo miragem na aridez do destino. Certeza nenhuma. Vá lá, certeza da morte. Um dia isso tudo acaba. Pois é, era tudo incerto mesmo. Ninguém sabia onde ia dar, mas eventualmente deu nisso, nessas ondas místicas, nessas mãos invisíveis, nessas bússolas, nessas velas alçadas, nessas linhas cruzadas. De repente deu nessas milhas marinhas, nesses fusos horários, nesses meses de solidão. Porque apesar de incerto, é tudo contável, palpável, tangível. A certeza é pura fantasia, já a incerteza vem com réguas, com mapas, com manual e assistência técnica. Quem prefere a miragem, morre sedento. Só encontra água aquele que aprende a navegar o deserto.
Disse Cora Coralina, anos e mais anos atrás, eu era menina, nem entendi direito, que escrever era um sofrimento, uma tortura, e que ela própria não gostava de escrever. Mas, era mais forte que ela. Era um "es muss sein" de sua vida. E sendo assim, não há escapatória. Portanto, ela obedecia o algoz da escrita, e derramava suas linhas. "Ela é uma poetiza", dizia minha mãe, "transforma o triste em bonito, não em alegre, mas faz surgir beleza onde só havia dor".
"Amor volat undique"
A única coisa que ainda me surpreende é essa capacidade masoquista que a gente tem de amar qualquer coisa. Qualquer poça d'água de chuva que molhe nosso sapato novo é objeto de amor, porque de alguma forma tocou nossa vida. Não tenho nada no peito, sequer um soprinho tímido de ar ecoando no oco do meu tórax, e ainda assim, brota ali, na secura, um amor frutífero, frondoso e verde, um oásis na aridez solitária da alma. Verde de insistência, eu diria, não de esperança. Amor não dá esperança nenhuma. O Amor atira a gente do precipício da existência e nos dá a consciência triste do chão duro, de dar com a cara no muro, na porta, de dar murro em ponta de faca. E quebrados em mil pedacinhos, nossa vida, um caos, no fundo do poço, o que nos dói é somente o coração na presença da grandiosidade e da perfeição incompreensíveis de qualquer amor.
Pra não dizer que não falei das pérolas...
Sempre penso na concha teimosa que, cuspida pela maré, agarra-se ao restinho da correnteza e volta lá pra dentro do oceano. Porque é só isso que ela conhece e ama incondicionalmente. Apesar de nunca poder conhecer por inteiro o mar, ela se joga novamente pra dentro da imensidão e continua buscando o seu destino. E o mar, comovido, toda entrega incondicional é fatal, envolve a concha, também amoroso e, em resposta, continua empurrando-a pra areia, tentando mostrar-lhe o outro lado, desafiando-a a permanecer consigo nas incertezas da maré, nas correntes inconstantes, no meio do desconhecido. A concha sabe que viver é assim, é assumir todo risco, não adianta ter mapa, nem guarda-chuva, nem remédio pra dor de cabeça. É uma sucessão de ondas místicas e calmarias efêmeras. Mas, só assim, ganha-se o direito às pérolas.
Certo ou duvidoso?
Essas certezas que a gente acha que tem na vida, tudo mentira. Tudo miragem na aridez do destino. Certeza nenhuma. Vá lá, certeza da morte. Um dia isso tudo acaba. Pois é, era tudo incerto mesmo. Ninguém sabia onde ia dar, mas eventualmente deu nisso, nessas ondas místicas, nessas mãos invisíveis, nessas bússolas, nessas velas alçadas, nessas linhas cruzadas. De repente deu nessas milhas marinhas, nesses fusos horários, nesses meses de solidão. Porque apesar de incerto, é tudo contável, palpável, tangível. A certeza é pura fantasia, já a incerteza vem com réguas, com mapas, com manual e assistência técnica. Quem prefere a miragem, morre sedento. Só encontra água aquele que aprende a navegar o deserto.
Friday, October 10, 2003
Mundos Secretos - parte 2
Ajeitou o cabelo e 5 segundos do mais absoluto silêncio passaram lentamente. Paulo, com o olhar perdido, saiu do transe quando um "quer um pão de queijo" veio lá do fundo, como o som de um despertador de manhãzinha pescando nossa consciência lá do meio do sonho. Ele não conseguiu disfarçar. Ela ajeitou a pashmina novamente, se fazendo de desentendida, jogando uma ponta sobre o ombro esquerdo.
A pashmina era uma estratégia semiótica, (eufemismo para golpe sujo feminino). Era um querer esconder e querer mostrar ao mesmo tempo. A mensagem subliminar era de que embaixo daquele tecido retorcido havia algo tão precioso, tão exclusivo, que precisava ser recoberto com perfeita maciez e calor. Clara fingia que estava escondendo, quando na verdade, estava quase mostrando.
Aquela aura pluri-sensorial confundia Clara, ela queria entender aonde estava a coisa que fazia surgir nela um monte de corações pulsantes, em partes esquisitas do corpo, no estômago, na garganta... E perdia-se na fumaça que riscava o ar e se desfazia lenta em pequenas nuvens, nos cafés que perfumavam a mesa, num dente um pouco torto na arcada inferior do lado esquerdo de Paulo, nas mãos brancas de traços básicos, de palmas magras e dedos longos, que acenavam com o cigarro, ou nos "d"s e "t"s que ele pronunciava de uma maneira suave, à moda antiga. Curiosa, Clara pegou-se observando fixamente a boca dele.
Ele apoiou o cigarro no cinzeiro e debruçou-se sobre a mesa. Os corações espalhados em Clara marcavam passos fora de sintonia. A saliva sumia da boca. Até que, os olhos, que encontraram-se brevemente entre a fumaça perpendicular do cigarro e o vapor do café, desviaram-se num segundo:
-- Acho que está na hora, disse Paulo.
Os corações estancaram de uma vez. "Hora de quê?", pensou Clara. Sentiu-se ruborizar quando o viu tirar do bolso os malditos ingressos do cinema.
A pashmina era uma estratégia semiótica, (eufemismo para golpe sujo feminino). Era um querer esconder e querer mostrar ao mesmo tempo. A mensagem subliminar era de que embaixo daquele tecido retorcido havia algo tão precioso, tão exclusivo, que precisava ser recoberto com perfeita maciez e calor. Clara fingia que estava escondendo, quando na verdade, estava quase mostrando.
Aquela aura pluri-sensorial confundia Clara, ela queria entender aonde estava a coisa que fazia surgir nela um monte de corações pulsantes, em partes esquisitas do corpo, no estômago, na garganta... E perdia-se na fumaça que riscava o ar e se desfazia lenta em pequenas nuvens, nos cafés que perfumavam a mesa, num dente um pouco torto na arcada inferior do lado esquerdo de Paulo, nas mãos brancas de traços básicos, de palmas magras e dedos longos, que acenavam com o cigarro, ou nos "d"s e "t"s que ele pronunciava de uma maneira suave, à moda antiga. Curiosa, Clara pegou-se observando fixamente a boca dele.
Ele apoiou o cigarro no cinzeiro e debruçou-se sobre a mesa. Os corações espalhados em Clara marcavam passos fora de sintonia. A saliva sumia da boca. Até que, os olhos, que encontraram-se brevemente entre a fumaça perpendicular do cigarro e o vapor do café, desviaram-se num segundo:
-- Acho que está na hora, disse Paulo.
Os corações estancaram de uma vez. "Hora de quê?", pensou Clara. Sentiu-se ruborizar quando o viu tirar do bolso os malditos ingressos do cinema.
Thursday, October 09, 2003
Mundos Secretos - parte 1
(cont. de Indivíduos Adjacentes, Paulo e Clara - vários posts abaixo)
Chegou, sentou e dominou todo o campo de visão do rapaz. Estava enrolada em uma echarpe, ou xale (lá sabia ele o nome certo daquele pedaço de pano com franjinhas), de uma textura interessante que provocava insights sinestésicos em Paulo. Era a soma do tecido macio e quente, da pele branca da nuca que escapava à cobertura da gola e dos cabelos, naquele comprimento "estou deixando crescer", que Clara portava.
Os brincos emitiam sinais de luz que deveriam coincidir com código Morse que seu cérebro parecia compreender intuitivamente. De repente, ela correu a mão pelos cabelos, pondo o rosto de lado e, sem querer, a echarpe caiu dos ombros.
Paulo tentou, sem sucesso, resistir ao impulso de espiar dentro do decote voluptuoso da blusa de Clara. Mas, no final, os olhos se prenderam em outro detalhe, que não o colo almofadado dela: a marquinha do biquíni. Uma alça suavemente tatuada na pele alva, e mais alva ainda, era a fronteira entre o que todos podem ver e o mundo secreto, privado e exclusivo, a que só poucos, muito poucos, têm acesso, que se esconde por debaixo de simples tirinhas de pano. E que, na fantasia de Paulo, só ele poderia ver. E queria ver agora mais do que nunca. (Mas teria que terminar o café, dois pra ela, um pra ele, e enfrentar um filme do tipo circuito cultural de algum país obscuro, cujo título observa a fórmula artigo+substantivo e sempre recebe 5 estrelas de todos os jurados com críticas monossilábicas.)
Chegou, sentou e dominou todo o campo de visão do rapaz. Estava enrolada em uma echarpe, ou xale (lá sabia ele o nome certo daquele pedaço de pano com franjinhas), de uma textura interessante que provocava insights sinestésicos em Paulo. Era a soma do tecido macio e quente, da pele branca da nuca que escapava à cobertura da gola e dos cabelos, naquele comprimento "estou deixando crescer", que Clara portava.
Os brincos emitiam sinais de luz que deveriam coincidir com código Morse que seu cérebro parecia compreender intuitivamente. De repente, ela correu a mão pelos cabelos, pondo o rosto de lado e, sem querer, a echarpe caiu dos ombros.
Paulo tentou, sem sucesso, resistir ao impulso de espiar dentro do decote voluptuoso da blusa de Clara. Mas, no final, os olhos se prenderam em outro detalhe, que não o colo almofadado dela: a marquinha do biquíni. Uma alça suavemente tatuada na pele alva, e mais alva ainda, era a fronteira entre o que todos podem ver e o mundo secreto, privado e exclusivo, a que só poucos, muito poucos, têm acesso, que se esconde por debaixo de simples tirinhas de pano. E que, na fantasia de Paulo, só ele poderia ver. E queria ver agora mais do que nunca. (Mas teria que terminar o café, dois pra ela, um pra ele, e enfrentar um filme do tipo circuito cultural de algum país obscuro, cujo título observa a fórmula artigo+substantivo e sempre recebe 5 estrelas de todos os jurados com críticas monossilábicas.)
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