Wednesday, August 27, 2003

Paulo e Clara: um a um

Foi pela rua, peito estufado, assobiando o hino nacional. Era sua irônica trilha sonora, música de exaltação. Assobiou quando comprara o primeiro carro, quando entrara em seu primeiro apartamento e sempre que trocava de empregos, no primeiro dia de trabalho, ia assobiando no caminho.
Chegara mais cedo, jornal debaixo do braço, dobrado nas palavras-cruzadas, comprou cigarros e veio andando em passo relaxado observando o café. 'Mesa do lado de fora pra duas pessoas'. Um restinho de sol reluzia na beirada da mesa esquentando o lugar oposto ao de Paulo. Pediu um cinzeiro, acendeu um cigarro deixando-o no canto da boca e, quando começava a limpar os óculos enxergou Clara, embaçada, no fundo do quadro, vestida de preto.

Clara marchou rua acima, amaldiçoando os sapatos que escolhera. (Entre o bonito e o confortável, ficou com o bonito, é claro.) Percebeu, depois de dois quarteirões de cantadas infames, que o seu decote estava exagerado e conforme ela andava, ele se mexia, para deleite dos transeuntes daquela tarde de sábado. (Que vergonha meu Deus, fazer o quê?) Entrou no Conjunto Nacional e avistou Paulo. Sentiu-se ruborizar. Esquivou-se, mesclando-se a um grupo de adolescentes-cabeça e entrou na primeira loja feminina que encontrou. Providenciou uma pashmina e enrolou-se. Aproveitou para retocar o batom, chupar a barriga em frente ao espelho e ensaiar um sorriso ou cumprimento. Sentiu-se ridícula na vista das vendedoras da loja, afinal de contas falar sozinha era vergonhoso. Pagou e saiu.

Tuesday, August 19, 2003

Silêncio pe(r)dido

Botou os dedos sobre meus lábios e pressionou suavemente, pedindo silêncio. Eu obedeci.

Logo, acariciou meus cabelos, deixou a mão pousar na minha nuca e me olhou longamente. Eu, calada, lhe implorei um beijo. Quebrei o silêncio com meu suspiro insatisfeito. Mas, suas mãos correram em socorro das minhas, se entrelaçaram e o gemido, preso na garganta, esmoeceu e perdeu-se na expiração um pouco triste, um pouco nervosa.

Enquanto isso, os corpos se entendiam, as mãos encontravam outros pastos e todo pensamento e palavra se desfazia em suor. Só existia nosso olhar pontilhado e cada vez que uma piscada era mais longa, sua ou minha, eu sentia saudades de você.

Enfim, quando a escuridão cedeu ao seu olhar azul-clarinho, palavras roubadas perguntaram em silêncio 'o que aconteceu?'. Mas, no lugar da minha voz, tuas mãos emolduraram meu rosto, o polegar apagou docemente uma lágrima e me refiz em você. E sinto agora, sorrateiros, teus dedos eternos amortecendo meus soluços furtivos e dúvidas depois da tua partida.

Thursday, August 07, 2003

Paulo:Clara - Frase veemente

-- Alô.
-- 'Frase veemente de proibição', 11 letras.
Clara gargalhou sonoramente.
-- Comprei uma revista de palavras-cruzadas. Nível Cobrão. Estou viciado.
Gargalhadas de novo.
-- Posso perceber.
-- Aposto que você não adivinha.
-- Me dá algumas letras aí.
-- A segunda letra é 'o', a quarta é 'c' e a última é 's'.
-- Hmmm... Só isso?
-- Só. Posso falar?
Clara fez muxoxos de quem estava raciocinando.
-- ...veemente... proibição...
-- Você não vai adivinhar. Não faz o menor sentido. Nem adianta querer queimar os neurônios. A dica não tem nada a ver com a resposta, te juro.
-- Então diz.
-- Te digo o seguinte: vai pensando, hoje é quarta, te dou três dias, no sábado, lá pelas três da tarde, no Conjunto Nacional, eu te digo.

Da série "palpite nunca é demais"

Conversa com Glória Perez:

-- Eshcuta, (sotaque carioca), acho que a Regina Duarrrte ficaria ótima como Sofia. O negócio é que eshtá faltando aí no seu teishto uma cerrrta pluralidade étnica, sabe, unsh ciganosh, unsh judeush orrrtodoxosh, um pessoal árabe, quem sabe unsh japonesesh? Aí vira novela dash oito. Com direção de Daniel Filho e tudo maish. E tudo maish.

Wednesday, August 06, 2003

Aleluia!

Viva o hyper text.
E a Silvia.
Ui. Mas ainda preciso resolver essa letrinha filha da mãe.

Mudanças, mudanças.

Reza brava

Santa Periquita do Bigode Loiro, Socorrei-me!

Odeio mudanças. Odeio, odeio. Queria o template à lá Mondrian para o resto da minha vida. Pra sempre. Mas ele sumiu da minha área de manutenção e do Blogger como um todo. Foi bom enquanto durou e que não seja eterno posto que é blogging tool gratuita, certo?

Por favor freguesia, o gerente se desculpa pelo mau-jeito mas as mudanças estão feitas sempre com o foco no senhor leitor, "client driven", e dentro em breve o meu, o seu, o nosso blog estará de volta ao "normal diferente", tá?

Servimos bem para sempre servir.

Friday, August 01, 2003

Mundos Paralelos: antes da história.

Com a barriga e as pernas pro alto, uma persiana entreaberta e um livro extremamente chato no colo, Sofia observava entediada aquele sábado esquisito.
Sentia-se um monstro, uma sequóia secular gigante e presa eternamente ao chão. Já não alcançava os pés e não conseguia amarrar seus próprios sapatos. E um monte de coisas que ninguém conta sobre a gravidez a surpreendiam cada manhã. Hemorróidas, gases, espinhas, o leite escorrendo do seio prematuramente e as canelas inchadas. Envergonhava-se de estar querendo brigar com a natureza, que deveria ser mais sábia, que lhe dava esse prazer supremo de gerar uma nova vida. Arrependia-se com um ataque de falta de ar, vontade de fazer xixi, de comer algum doce, sono e dor nas costas. Era tudo difícil, vagaroso, esquisito. Sentia um pouco de tudo, dor em todo lugar, enjôo, mal estar e fome. E sentia remorso de novo. Não precisava sentir remorso. Mas, sem entender direito o seu coração, Sofia deprimia-se levemente de tanta estranheza.

Sentou-se de novo com uma xícara de chá, um cobertor, um pão com manteiga, o mesmo livro e antes que se concentrasse, batidas parcas na porta a interromperam.

Carregou-se até o olho mágico, com as mãos apoiadas nas costas, como todas as mulheres andam depois dos 7 meses de gravidez e reconheceu rapidamente aqueles olhões vermelhos e o nariz inchado.
-- Que que aconteceu Clarinha...
Clara não conseguiu responder. Entrou com um pacote de restaurante na mão. Sofia entendeu tudo. Uma não falou nada pra outra, porém sabiam-se telepaticamente, era infálivel. Sofia a pôs sentada no sofá. Pôs a xícara de chá na mão dela. Ofereceu de guardar o pacote do restaurante na geladeira. Depois sentou-se pra dividir o pão com manteiga e tudo mais naquela tarde de sábado esquisita.
Reality check: o preço que se paga...

Moça bonita não paga, mas também não leva!

Cheguei no caixa e até a moça que estava do meu lado se assustou: "Oops! That's an expensive pepper!"

Indeed. Mas aqui é assim. Tudo que é natural vem de outro país. Ou você acha que gringo planta alguma coisa? Planta nada. Ah, bom, só grama no jardim. In the backyard. E isso eles cultivam religiosamente. Tem uma gama longuíssima de produtos para proteger a grama, ora do frio, ora do calor, ora das pragas de jardim, ora do dono descuidado mesmo. Tem todos aqueles cortadores de grama hi-tech (não esquecer daquele famoso filme de ficção científica "The lawnmower man"). Ou seja, grama não se come. Conclusão: manda importar tudo do México mesmo. Mas daí, tem um limão triste, com a moral lá em baixo, que não nasceu pra ser caipirinha, sabe... E você perambula sem graça pelas gôndolas de vegetais, esperando se apaixonar loucamente por um melão, que um papaia lhe chame a atenção, que os tomates gritem "Marinara" em uníssono. Mas não, não tem jeito, nada pode chegar aos pés daquele monte de homem meio sem dentes, suados, gritando que a dúzia da abobrinha baixou, na barraquinha de lona laranja armada em frente a kômbi. Nada nunca se comparará ao colorido alegre do homem das panelas, aquele que concerta cabos, que vende a borrachinha do liquidificador, que amola facas, canivetes, tesouras e alicatinhos de unha. Do ladinho da barraca da senhora que vende bonequinhas plásticas, que vêm com uma mamadeirinha e um pente e fazem xixi. Logo ali na frente do homem do peixe - geralmente japonês - aquele cheiro forte nem incomoda quem passa, porque geralmente todos os transeuntes trazem consigo um pastel soltando fumacinha de tão quente!

Aqui, a gente olha a cenoura pálida, coitadinha, e tem vontade de botar ela no sol pra bronzear. Um abacaxi sem auto-estima nenhuma, que já vem descascado num potinho plástico, despido da sua carapaça imponente - já nem é abacaxi. Não vou nem falar da maçã. Se os irmãos Grimm tivessem morado aqui, a Branca de Neve teria sido envenenada com outra coisa qualquer, talvez um sanduíche de pasta de amendoim com geléia, ou um donut reluzindo de tanta gordura, da Krispy Kréme. (Não precisava nem por feitiçaria, assim que ela mordesse o donut ia desmaiar de asia e o Príncipe Encantado chegaria em seu cavalo branco trazendo Engov!)

1 pimentão por 1,68 dólares, madame, vai levar?

Vou sim! vou resgatá-lo deste orfanato de legumes, verduras e frutas onde ele estava fadado a terminar sua curta vida vegetal.

Já na minha panela, cortadinho, temperadinho, misturadinho com todo o resto, tava ele lá, o pimentão, feliz da vida, recuperado de todos os complexos de inferioridade. E eu jantei muito bem, obrigada. À lá brasileira.