Monday, June 30, 2003

Indivíduos Adjacentes: Sofia.

Entrava no banheiro apressada. Não, não era bexiga, mas a vontade de chorar que a fazia correr lá pra dentro. Sofia sentava na tampa do vaso, curvava-se, levava as mãos a cabeça e só depois de longos soluços - silenciosos, como só ela sabia soluçar em silêncio - ia começar a tentar entender porque estava chorando. Era tudo. Era tudo a sua volta que a fazia chorar. Não que tudo fosse potencialmente triste, mas tudo a atingia de alguma forma e a única reação que ela conseguia ter diante de qualquer estímulo neste período de sua vida era o choro. Nunca trancava a porta do banheiro, porque se acontecesse alguma coisa poderia sair rapidamente (mas lá no fundo sabia que na verdade tinha medo de que acontecesse algo com ela lá dentro e se a porta estivesse trancada, demorariam mais para ouví-la e resgatá-la).

Tinha vergonha de se sentir assim. Lavava o rosto repetidas vezes com água bem fria pra não revelar os olhos inchados. Porém Sofia já intuia que seu pequeno intervalo estava prestes a terminar e ficava diante do espelho, falando consigo mesma pelos minutos restantes.

Como um ator nas coxias do teatro espera os três avisos sonoros, ela também esperava o seu sinal para sair dali. Repassando em sua mente, não o texto da peça, mas um pequeno mantra de afazeres e tarefas e tudo o que ela não podia esquecer. Quando ouviu seu sinal, inconfundível, apressou-se em sair do banheiro e desabotoou a blusa no caminho. Debruçou sobre a grade do berço e Nívea agora já se acalmava pois percebia a chegada da mãe. Colocou-a perto do coração, sentou-se perto da janela para amamentar. O papel de mãe era para Sofia uma coisa surpreendente: a solidão de uma no banheiro era interrompida pela solidão da outra no quarto (e a fome da mamada da tarde ou uma fralda suja) e logo sabiam que precisavam estar juntas de novo para que tudo se resolvesse, a dor acabasse, a fome passasse, a solidão sumisse. Só Nívea podia tirar Sofia do banheiro com seu poder recém-nascido bem como, só Sofia podia saciar a fome e cuidar da pequena Nívea, só ela sabia, e era verdade, distingüir se o chorinho estridente era fome, dor de ouvido, cólicas ou troca de fralda.
Pensando bem, Sofia entendia como seus parâmetros haviam mudado: todo o resto, tudo o que não fosse Nívea, era mais feio e triste e só poderia ser razão pra chorar de vez em quando mesmo.

Friday, June 27, 2003

Mundos paralelos, indivíduos adjacentes - Delta de Vênus

O primeiro triângulo da história se estabelece a partir de Clara, Sofia e Dora. A base do triângulo é formada por Clara e Sofia unidas por uma reta firme que representava a compreensão total entre as duas. O terceiro vértice era Dora sozinha no alto, um ponto instável, às vezes mais distante, às vezes mais próxima.

Se Clara e Sofia haviam se aproximado por uma incrível compreensão silenciosa e mútua, o que as atraía para Dora era o oposto: incompreensão total. Dora era o contrário das duas ao mesmo tempo e, sendo assim, também era parte de cada uma delas como o negativo de uma foto ou o lado apagado da Lua. Três ângulos, três vértices distintos que formavam o mesmo polígono, três vidas que colidiram em uma mesma figura e se desdobram em muitas mais retas, tangentes, transversais...

A tentativa de suicídio de Dora era o motivo para a primeira reunião das três, num quarto excessivamente branco. Sofia, sentada na cadeira mais próxima do leito, observava as amigas. Clara na janela, alternando entre a conversa e o lado de fora. Sofia achava Clara parecida com um gato, que gosta da boa vida, mas sempre vive o conflito de jogar tudo pro alto e ganhar o mundo, a liberdade. E, por mais que não jogasse tudo pro alto, nunca seria totalmente domesticado. Dora, na cama, obviamente, amarrada ainda, pra não fazer mais nenhuma besteira contra si, abria os olhos e murmurava algo e voltava a dormir. Sofia desconfiava que era seu estratagema pra não enfrentar as amigas, a realidade, enfim a vida. Para Sofia, o problema de tudo isso, da amiga ter querido morrer, era perceber essa vontade mesma de morrer e ficava com medo de que um dia ela mesma sucumbisse a dor e intentasse contra sua própria vida também. Clara não tinha tanta compaixão e da janela procurava por todos os cantos uma justificava um pouco racional pra tudo aquilo. Não conseguia admitir uma coisa daquelas, não tinha pena de Dora, estava brava, estava com raiva, não conseguia entender nada daquilo, era como se suicídio fosse uma palavra estrangeira numa língua sobre a qual Clara não tivesse nenhum conhecimento.

Quando acordou de verdade, Dora encontrou-se sozinha, Clara e Sofia já haviam ido embora. Descansou os olhos nas margaridas perto da janela, onde antes estava Clara. E, depois de alguns segundos, sorriu ao perceber que, na falta de um vaso, as amigas haviam posto o ramalhete de flores na comadre. Seu primeiro sorriso "pós-mortis" fora em razão da brincadeira das amigas. E de leve, bem de leve, pelas flores, pelo sorriso e pelas amigas, realizava em si a vontade de viver novamente.

Thursday, June 26, 2003

Tua palavra

Sonhei que estava lançando um livro e via você passar pela vitrine da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Você ficava surpreso e folheava meu livro com cara de "eu achei que iam me publicar antes de você". E com toda arrogância do mundo me estendia uma mão e dizia "Lembra de mim?".

(E eu lembrava de cada palavra tua neste interlúdio onírico, tudo parava e eu olhava pra trás e via quilômetros de páginas escritas, imaginando tua mão direita com a caneta passando por cima de tudo, forte, decidida, assertiva, você de óculos, vista cansada, resistindo e escrevendo, escrevendo, escrevendo, e eu do tamanho de um botão caminhando nas entrelinhas...)

Pra responder no mesmo tom, apertava sua direita firme e penetrava as lentes de seus óculos com cara de "tá vendo, eu consegui".

Sem nem disfarçar seus ares de "não vou ler isso nem no banheiro" me oferecia um exemplar, puxava uma caneta do bolso, desafiando-me a autografá-lo. E, bem na hora em que ia começar a escrever uma dedicatória, me lembro que era tudo pra você, que o livro eu tinha escrito pra você, pra te provar que eu era capaz. E tudo se desfazia de repente: livraria, livros, inclusive o Conjunto Nacional, e eu voltava a ser uma mera leitora sua. Nada além de um par de olhos a mais e nos fitávamos naquele sonho, como foi na realidade, sem palavras que coubessem no silêncio cursivo, (esse talvez seja o mal de quem se lê, de quem se escreve). Nem um pingo num "i" se ouvia. E, sem querer, te revelava telepaticamente que foi logo no teu primeiro texto que, com o poder da tua vírgula meticulosa, meu coração parou e, no meio do teu aposto, resolveu cair de amores por você.

Wednesday, June 25, 2003

Fronteira

(...) "Os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial.
Mas não se diz sempre que o autor só pode falar de si mesmo?

(...) "Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além do meu eu).

(...)"O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo."

Milan Kundera in A insustentável leveza do ser
Con Lexotan es posible!

-- Juliana!
Saí do meu transe momentâneo e encontrei dois braços vindo de encontro a mim com um comprimidinho e um copinho d'água. Minhas mãos apressaram-se em estender-se e aceitar a oferta. No entanto, puxei o breque de mão e, antes de mesmo tocar na pequena e misteriosa pílula, perguntei:
-- O que que é isso?
Nesse exato momento todos os meus neurônios e sinapses gritavam pra eu calar a boca e mandar goela abaixo o comprimido, seja lá o que fosse, dane-se, a gente quer remedinho!
-- É um calmante.
Juro por Deus que hesitei. Mas nessa hora todos os meus nervos aclamavam por piedade, minha boca esboçava um sorriso involuntário e minhas mãos foram mais rápidas. Antes que eu pudesse refletir (refletir pra quê? pra quê? ô mulher complicada, toma o calmante e pronto!), antes de eu perguntar qual era o princípio ativo, se havia efeitos colaterais (efeito colateral de calmante? tenha santa paciência! calmante é uma pílula feita de efeitos colaterais! pra quê tanta frescura, toma logo!), a direita arremessou a pílula pra dentro da boca, a esquerda deu cobertura com a água e meu primeiro calmante começava sua jornada apaziguadora por dentro de mim. Em poucos minutos todas as minhas células regozijavam com esta calma sintética, deliciosa, quando um pensamento sabotador apareceu. Será que poderia voltar guiando pra casa?

Ah... não durou nem 30 segundos essa preocupação e de alguma maneira, sobre a qual não guardo registros, eu voltei guiando pra casa e quando percebi que estava um pouquinho mais consciente morri de dar risada.

Tuesday, June 17, 2003

Indivíduos adjacentes: Dora.

Com a mala pesada atrasando seu passo apertado, atravessava o aeroporto. Enquanto o corpo avançava pelas esteiras rolantes, a mente procurava em vão uma razão pra ficar. Era Dora que, lá fundo, não queria resistir. Estava louca pra deixar barato, pra fraquejar de novo, era mais fácil, rápido e indolor.
Já estava no táxi agora, o aeroporto ficara pra trás. Recolocou tudo no armário correndo, sentou no sofá, olhou pela janela, ligou a televisão, o rádio e o liquidificador. Fez uma vitamina, rasgou a passagem. E no meio do mar de inconsciência que silenciava sua cabeça, seu estômago manifestou-se, não sabia bem a favor de quê, mas o corpo ainda queria lutar. O seu ventre pedia algo, há muito tempo. Dora, sem querer ouví-lo, e para silenciar de vez as entranhas intrometidas, tomou 50 cápsulas de não-sei-o-quê.

Quando acordou da lavagem estomacal, de infeliz tinha se feito louca: a vida, da qual havia feito pouco caso, doía por todo o seu corpo. E o pouco de autonomia que uma morta-viva poderia ter, lhe tiravam agora, amarrada na cama, com alimentação intravenosa. Sentiu nojo de si por provocar pena nos outros e até quis brigar. Foi então que o psiquiatra entrou no quarto e animou a família. Disse que ela iria ter alta logo, enquanto Dora cuspia longe o coquetel de anti-depressivos que tentavam lhe dar.

Friday, June 13, 2003

De volta ao presente (ou Tupperware fedido)

Cheguei em casa morrendo de sede. Ao abrir a geladeira, o odor gélido porém fedido me avisava que eu tinha ficado longe de casa tempo demais.

Era um tupperware com sopa de cenora e repolho.

E, como tudo que é Passado, devia ter ficado lá, longe, preso no tempo. Deveria ter se esgotado inteiramente naquele dia longínquo em que fiz a sopa para jantar. Mas, como todo Passado que não se esgotou completamente, que sobrou quietinho no fundo da nossa gelada memória, chega uma hora em que é necessário lidar com os restos que não tivemos força, apetite ou coragem pra digerir antes.

Ninguém escapa do Tupperware da Memória. É preciso confrontar os restos temidos e o cheiro terrível daquilo que quisemos esconder, esquecer ou simplesmente guardar com intenções pouco claras.

Sempre que guardamos esses pedaços incômodos da nossa história como quem não quer nada, devemos saber que o Passado, a qualquer momento, irá se impor, com o risco de contaminar o presente também. E, se buscamos voluntariamente o Passado, temos que enfrentar o cheiro de velho e de podre que ele tem.

(Juro que eu pensei em tudo isto ao chegar de Boston, enquanto de fato lavava o tupperware fedido. Vai ver que o odor de transubstanciação da matéria me subiu a cabeça...)

Thursday, June 12, 2003

Almanaque

Grandes merdas ter Dia dos Namorados.

Toda sexta e sábado é Dia dos Solteiros!

(E segunda, terça, quarta, quinta e até Domingo também.)
Indivíduos transversais

Amélia estava só, no seu canto e um belo dia engajou numa conversa sobre os anos 80 com Laércio. Morreram de rir juntos com recordações distantes do "Pogobol", do "Gênius", "Merlin" e enfim todo o rol de brinquedos produzidos naquela década emblemática.

E o apelo do passado semelhante dos dois, a identificação que um teve com o outro, fez surgir o interesse mútuo.

O passado é assim, irresistível. É culpa desse conforto universal que se sente quando se encontra em outra pessoa experiências semelhantes e coincidências e piadas e lembranças. Dá aquele gostinho de "poderíamos ter nos conhecido há tanto tempo"... E foi isso que Amélia disse num suspiro:
"Laércio, será que eu já não te vi antes, em algum momento há...sei lá, 15 anos atrás?"

Laércio entendeu tudo. E a partir dali fez o contato mais intenso, diário e escrito. Escreviam-se sempre pela necessidade imposta pela distância. Nem estavam tão distantes assim, mas os dois sabiam que esta distância era condição sinequânon daquela amizade. Pois as alianças que usavam, cada um em seu dedo anular esquerdo, tinham seu par em outra casa, em outra mesa, em outra relação. Mas não convém falar de algo que Amélia e Laércio não estavam prontos pra enfrentar. Nem sabiam se queriam enfrentar.

"Ah, Amélia...se eu tivesse te visto antes..."

Wednesday, June 04, 2003

Indivíduos adjacentes: Clara e Sofia

Sofia, certa manhã, quase bateu o carro, perdida no mundo das idéias e entendeu o que era reação em cadeia. Os carros, os sonhos e puft!: a realidade. Foi procurar um psicólogo.
Chegou no consultório um dia e deu de cara com dois olhos vermelhos e um nariz inchado. E aquela pessoa soluçante pediu-lhe um lenço. Sofia sorteou o pacote de kleenex de dentro da bolsa e estendeu para a moça do outro lado da sala de espera.
-- Tem dia que é assim (glup)... Meu nome é Clara (glup).

Ver Clara chorando copiosamente naquela saleta, onde era impossível olhar para outro lado ou ignorar sua tristeza, trouxe um certo alívio a Sofia. Ela comprovava a dor que também sentia, sem nome, sem razão certa, em outra pessoa. A amizade foi instantânea depois da compaixão de uma pela outra: Clara por revelar-se inteiramente e Sofia por dividir a dor e os lenços. E foi assim.

Tuesday, June 03, 2003

Mundos paralelos, indivíduos adjacentes
- 1a parte -

Clara conheceu Antonio na noite em que tomou seu maior porre. Apaixonou-se por ele alguns minutos antes de misturar as várias taças de vinho tinto com uma batidinha maneira de aguardente. Ele, por sua vez, interessou-se por ela logo na primeira risada escrachada que ela deu e foi mantendo as risadas altas e constantes à base de drinks ao longo da noite. Dançaram, conversaram, riram mas, quando eram quase 8 da manhã, os primeiros raios de sol chegavam com dores de cabeça lancinantes anunciando o fim do porre, a sede e a despedida meio sem jeito.

E foi então que Clara, caída de amores por Antonio, passou semanas grudada no celular. Foi a ressaca mais dura da história.
Cinco semanas depois, quando a esperada ligação chegou, Clara, de pijama vendo Seinfeld, disse, prontamente:
-- Não, obrigada.

Recusou o convite e dormiu abraçada com o orgulho. E Antonio, pra não dizer que perdeu a noite, pegou mais uns 2 numeros de telefones para os quais, obviamente, não tinha intenção nenhuma de ligar.

Algum tempo depois, em áreas distintas da cidade, num sábado ensolarado que tinha tudo pra dar certo, os dois levavam "um cano" de terceiros e pensavam se isso não seria um karma recém adquirido por eles, cada qual em seu canto da história.