Quero terminar esse ano sintonizada no barulho das ondas mar, no cheiro de terra molhada de chuva, numa manhã de inverno, no piloto anunciando pelo rádio que chegamos ao nosso destino (seja lá qual o destino que escolhemos - mas, sim, chegamos! - corre lá pra fora e vai buscar o que te espera).
Quero terminar o ano logo, chega, basta, quero o novo, e que o passado passe rápido saia do caminho pra que o novo venha e tomara que a gente erre uns cheques por aí pra rir e lembrar do que passou. Quero o novo agora, porque o agora é que é importante. Hoje é nosso. Amanhã pertence só a ele mesmo, aposto que Deus decide tudo na última hora, como todo bom brasileiro.
E chega de prometer bobagens de fim de ano, de jurar fazer dieta, entrar na academia e coisas do gênero. Faço um pacto com o prazer. Prazer simples com todos os verbos de ligação: serespaperconfi do agora. E, pelo caleidoscópio do desconhecido, contemplo o caos com sede e fome de instante, de hic et nunc. Quero que ele me envolva como o mar. Contagem regressiva pro agora e sempre:
10, Barulho das ondas do mar;
9, cheiro de chuva numa manhã de inverno;
8, "aqui é o comandante, sejam bem-vindos ao seu destino!"
7, quadrados de sol tatuados no chão da sala de manhã;
6, serespaperconfi;
5, hic et nunc;
4, pé direito, calcinha nova;
3, prazer;
2, caleidoscópio,
1, Deus.
Wednesday, December 31, 2003
Wednesday, December 17, 2003
Penelopéia
Penélope espera, há milhares de anos, lá às margens da Odisséia que Homero impôs a Ulisses. Passa os dias tricotando e as noites desfazendo o xale, tudo isto para evitar ter que se casar de novo (ela deve ter medo de que algum oráculo tire dela outro marido, um só já está mais do que bom). E assim, fazendo e desfazendo seus dias, ela engana o tempo, perde a noção das horas, da espera. Tanto que, "de repente", 20 anos depois, Ulisses resolve voltar - posso até ver Penélope de braços cruzados batendo o pezinho na areia da orla de Ítaca, torcendo o nariz e, desconfiada, pede pra ele provar que é ele mesmo. Sabia que era seu marido e que aquele era o momento pelo qual havia tricotado e destricotado 20 anos mas, peraí, acha que é fácil, que é só ir dizendo que é Ulisses e ir levando uma esposa fiel e uma ilha grega assim de bandeja?
Tá aqui teu arco, vamos, atire uma flecha. Prove que é você.
Ele sequer discute. Só ele conseguia dobrar seu arco. Só ela conseguia dobrar Ulisses. Pega o arco, atira uma flecha (aliás várias e mata todos os pretendentes com a ajuda do filho Telêmaco e da Deusa Atena).
Sou eu.
Não importava o cansaço, os anos que passaram, ele tinha que dar prova de estar a altura do passado e da espera e de Penélope.
Tanta coisa aconteceu na sua ausência.
Imagino agora Ulisses revolvendo os olhos enquanto images de cíclopes, deusas ciumentas, deuses furiosos, naufrágios e a guerra de Tróia inteira passam por sua cabeça. Irônico, mas, quem volta tem que se preparar pra aventura do reencontro. Há perigos demais na ausência também. E aventura do lado de fora, do desconhecido, pode ser equivalente a aventura de dentro, de quem espera. Porque o equilíbrio da história toda está em Penélope, que teve o destino selado pelo dever de Ulisses de ir à Guerra. Ele tinha que ir, portanto ela tinha que esperar.
Por fim, arrepende-se aquele que não empreende, não tenta, seja uma Odisséia, ou seja tricô. E haja novelo...
Tá aqui teu arco, vamos, atire uma flecha. Prove que é você.
Ele sequer discute. Só ele conseguia dobrar seu arco. Só ela conseguia dobrar Ulisses. Pega o arco, atira uma flecha (aliás várias e mata todos os pretendentes com a ajuda do filho Telêmaco e da Deusa Atena).
Sou eu.
Não importava o cansaço, os anos que passaram, ele tinha que dar prova de estar a altura do passado e da espera e de Penélope.
Tanta coisa aconteceu na sua ausência.
Imagino agora Ulisses revolvendo os olhos enquanto images de cíclopes, deusas ciumentas, deuses furiosos, naufrágios e a guerra de Tróia inteira passam por sua cabeça. Irônico, mas, quem volta tem que se preparar pra aventura do reencontro. Há perigos demais na ausência também. E aventura do lado de fora, do desconhecido, pode ser equivalente a aventura de dentro, de quem espera. Porque o equilíbrio da história toda está em Penélope, que teve o destino selado pelo dever de Ulisses de ir à Guerra. Ele tinha que ir, portanto ela tinha que esperar.
Por fim, arrepende-se aquele que não empreende, não tenta, seja uma Odisséia, ou seja tricô. E haja novelo...
Thursday, December 04, 2003
"... in the winter, when it drizzles..."
- Or "Things I learned in France" -
It was cold and rainy and if we had scientific information on the pluviometric conditions, I bet Paris would have been the rainiest city in all Europe during those 5 days. But I did not notice the rain and the cold until Sunday, the last day, the day we always fear and want to avoid. But there's no avoiding, you wake up and the first thing to cross your mind is "it's the last day". It's the day you take pictures like crazy, in desperation of keeping memories clearer and not forgetting any detail. The Métro station, the street of the hotel, the street signs - even the street signs are so much more charming....
Breathtaking. Gray days don't interfere with the colors and nuances of the City of Light. In fact, they bring out the true pale yellowish tone on the old buildings, the light green on the copper statues becomes shinier and the excessive white, cloudy white, offers more contrast against all the other colors.
There's something about the wind blowing hats and shaking the fringy end of the colorful scarves, people in long coats, gloves, hats... and after all the cold provides a constant excuse to drink wine - to warm up, to warm up!
It's so easy getting lost in that city, going around the block the wrong way, jumping out of the train on the wrong station, because nothing looks wrong, no métro station seems to be too far away, and right around the corner, au coin de la rue, there's a view to l'Opera, La Tour Eiffel, a crepérie, a café or an enticing soap shop.
At night, from a high floor in a high tower, the most beautiful view of the city - enhanced by early Christmas lights, on top of all the lights and cars and streets, looking like shiny blood vessels. There was I, sitting right in between the Eiffel Tower and Les Invalides, above Paris. It all happened so fast... I took another sip of my 'chocolate chaud', grateful for being there, for being able to enjoy every second, every color, every taste, every smell.
But in a blink, it was already Sunday and it looked much colder and rainier. Not even sweater # 4 together with coat # 2 and scarf # 1 could keep me warm. Beauty has the strange effect of bringing out sadness too. And that's when I found out the worst thing about Paris: saying good-bye. But french people know better and that's why in France they say...
'Au revoir' -- I thought. Yeah, 'til we see each other again.
N. da E.: queridos leitores, esse post vai em inglês devido a visitas internacionais que estamos aguardando. (No melhor estilo "build a field and they will come"!)
It was cold and rainy and if we had scientific information on the pluviometric conditions, I bet Paris would have been the rainiest city in all Europe during those 5 days. But I did not notice the rain and the cold until Sunday, the last day, the day we always fear and want to avoid. But there's no avoiding, you wake up and the first thing to cross your mind is "it's the last day". It's the day you take pictures like crazy, in desperation of keeping memories clearer and not forgetting any detail. The Métro station, the street of the hotel, the street signs - even the street signs are so much more charming....
Breathtaking. Gray days don't interfere with the colors and nuances of the City of Light. In fact, they bring out the true pale yellowish tone on the old buildings, the light green on the copper statues becomes shinier and the excessive white, cloudy white, offers more contrast against all the other colors.
There's something about the wind blowing hats and shaking the fringy end of the colorful scarves, people in long coats, gloves, hats... and after all the cold provides a constant excuse to drink wine - to warm up, to warm up!
It's so easy getting lost in that city, going around the block the wrong way, jumping out of the train on the wrong station, because nothing looks wrong, no métro station seems to be too far away, and right around the corner, au coin de la rue, there's a view to l'Opera, La Tour Eiffel, a crepérie, a café or an enticing soap shop.
At night, from a high floor in a high tower, the most beautiful view of the city - enhanced by early Christmas lights, on top of all the lights and cars and streets, looking like shiny blood vessels. There was I, sitting right in between the Eiffel Tower and Les Invalides, above Paris. It all happened so fast... I took another sip of my 'chocolate chaud', grateful for being there, for being able to enjoy every second, every color, every taste, every smell.
But in a blink, it was already Sunday and it looked much colder and rainier. Not even sweater # 4 together with coat # 2 and scarf # 1 could keep me warm. Beauty has the strange effect of bringing out sadness too. And that's when I found out the worst thing about Paris: saying good-bye. But french people know better and that's why in France they say...
'Au revoir' -- I thought. Yeah, 'til we see each other again.
N. da E.: queridos leitores, esse post vai em inglês devido a visitas internacionais que estamos aguardando. (No melhor estilo "build a field and they will come"!)
Wednesday, December 03, 2003
Infinito Despertar
No meu reino o Sol estaria sempre nascendo naquela janela enorme, sobre o mar, à direita da nossa cama. Quem sabe, fossem precisos mais sóis, não somente um, para manter a constante nascente vermelha, rosada, alaranjada e depois dourada e quente. Então, os meus sóis passeariam no céu, livres, pondo-se lá trás, do lado onde não há janelas, e nós não nos importaríamos, porque de frente pra nós era um dia infinito, brilhante, de águas calmas, cheiro de domingo, e a penugem loira do teu cangote emoldurando minha vista, reluzindo os meus sóis, fazendo cócegas no meu nariz. No meu reino só existiria um dia, apenas aquele amanhecer constante, doze sóis, a nossa cama, a nossa janela, o teu cangote, a água calma, o horizonte. E se o cansaço batesse e quiséssemos dormir, asas aveludadas de pássaros gigantes tomariam o céu e esconderiam os sóis com rasantes sobre o mar. E, à meia luz, sonharíamos juntos com cidades novas, outras línguas, horizontes mais distantes do que aquele à nossa janela. E no reino dos sóis nascentes, nós acordaríamos eternamente, nossas sombras projetadas, superpostas, escorrendo pelo chão, esticando-se pelas paredes, teu corpo e meu corpo tatuados naquele quarto, o único quarto do único dia. Lá no meu reino do despertar infinito.
Monday, November 17, 2003
-- Vira esse coração pra lá que eu não quero pegar essa doença, não! E nem vem que não tem. Próxima vez que você bater na minha porta eu digo não. Comigo não, violão!
Mas quem disse que a gente tem escolha? E o temido bacilo da vida, do amor, da entrega incondicional viaja no ar e pode ser transmitido por aperto de mão, abraço, copos compartilhados, saliva compartilhada, alface mal lavada, água não fervida, carne mal cozida e até em banheiros públicos. Too late. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Mas quem disse que a gente tem escolha? E o temido bacilo da vida, do amor, da entrega incondicional viaja no ar e pode ser transmitido por aperto de mão, abraço, copos compartilhados, saliva compartilhada, alface mal lavada, água não fervida, carne mal cozida e até em banheiros públicos. Too late. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Tuesday, November 11, 2003
Almanaque -
"...Tem horas que escrever é praticamente um movimento peristáltico."
Do recém reencontrado amigo Barizon.
"...Tem horas que escrever é praticamente um movimento peristáltico."
Do recém reencontrado amigo Barizon.
Saturday, November 08, 2003
Ponta da língua
Quero escrever. Quero tanto. Mas não sai. Mora dentro da gente, na ponta da nossa língua, um livro inteiro. E mais uns 30 sonetos numerados com romanos, e mais um monte de coisas que quisemos dizer, que perdemos a chance e que agora fogem da gente, sorrateiras, no silêncio da noite. Custava aparecer aqui e me dar a graça de um texto qualquer?
Thursday, November 06, 2003
Quizas, quizas, quizas...
Me perco em "Ses" e "Serás" infinitos e faço um pensamento em caracol que acaba por me acordar ao invés de me adormecer. E fico horas de frente pra parede escutando os minutos passarem no despertador ao meu lado e os barulhos do mundo esmoecerem lá fora. Por quê esta doença nostálgica de querer aquilo que a gente nunca teve, ainda no passado? É como querer corrigir, voltar lá, anos, dias, meses atrás e ver o que seria, tivesse sido diferente aqui e ali. Mas 'o que seria' já é uma frase errada. Nada que seria, efetivamente foi em tempo algum. É uma conjugação sem potencial, algo que já não aconteceu e o passado já se esgotou. Sofrer pelo passado que passou já me ocupa porcentagens astronômicas... Sofrer aquilo que nem aconteceu, me tira o sono. E sigo tecendo, durante o dia, argumentos, justificativas, razões e certezas. Com o cair da noite, desfaço tudo, sozinha, enrolando meu novelo de "Ses" e "Serás".
Sunday, October 26, 2003
"O maior risco da vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e pois penado, ainda que seja amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo desesperado de favor?
(...)
Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem querela."
Gil Vicente in O velho da horta, (1508-1515).
(...)
Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem querela."
Gil Vicente in O velho da horta, (1508-1515).
Saturday, October 25, 2003
Considerando...
Ossos do ofício -
Disse Cora Coralina, anos e mais anos atrás, eu era menina, nem entendi direito, que escrever era um sofrimento, uma tortura, e que ela própria não gostava de escrever. Mas, era mais forte que ela. Era um "es muss sein" de sua vida. E sendo assim, não há escapatória. Portanto, ela obedecia o algoz da escrita, e derramava suas linhas. "Ela é uma poetiza", dizia minha mãe, "transforma o triste em bonito, não em alegre, mas faz surgir beleza onde só havia dor".
"Amor volat undique"
A única coisa que ainda me surpreende é essa capacidade masoquista que a gente tem de amar qualquer coisa. Qualquer poça d'água de chuva que molhe nosso sapato novo é objeto de amor, porque de alguma forma tocou nossa vida. Não tenho nada no peito, sequer um soprinho tímido de ar ecoando no oco do meu tórax, e ainda assim, brota ali, na secura, um amor frutífero, frondoso e verde, um oásis na aridez solitária da alma. Verde de insistência, eu diria, não de esperança. Amor não dá esperança nenhuma. O Amor atira a gente do precipício da existência e nos dá a consciência triste do chão duro, de dar com a cara no muro, na porta, de dar murro em ponta de faca. E quebrados em mil pedacinhos, nossa vida, um caos, no fundo do poço, o que nos dói é somente o coração na presença da grandiosidade e da perfeição incompreensíveis de qualquer amor.
Pra não dizer que não falei das pérolas...
Sempre penso na concha teimosa que, cuspida pela maré, agarra-se ao restinho da correnteza e volta lá pra dentro do oceano. Porque é só isso que ela conhece e ama incondicionalmente. Apesar de nunca poder conhecer por inteiro o mar, ela se joga novamente pra dentro da imensidão e continua buscando o seu destino. E o mar, comovido, toda entrega incondicional é fatal, envolve a concha, também amoroso e, em resposta, continua empurrando-a pra areia, tentando mostrar-lhe o outro lado, desafiando-a a permanecer consigo nas incertezas da maré, nas correntes inconstantes, no meio do desconhecido. A concha sabe que viver é assim, é assumir todo risco, não adianta ter mapa, nem guarda-chuva, nem remédio pra dor de cabeça. É uma sucessão de ondas místicas e calmarias efêmeras. Mas, só assim, ganha-se o direito às pérolas.
Certo ou duvidoso?
Essas certezas que a gente acha que tem na vida, tudo mentira. Tudo miragem na aridez do destino. Certeza nenhuma. Vá lá, certeza da morte. Um dia isso tudo acaba. Pois é, era tudo incerto mesmo. Ninguém sabia onde ia dar, mas eventualmente deu nisso, nessas ondas místicas, nessas mãos invisíveis, nessas bússolas, nessas velas alçadas, nessas linhas cruzadas. De repente deu nessas milhas marinhas, nesses fusos horários, nesses meses de solidão. Porque apesar de incerto, é tudo contável, palpável, tangível. A certeza é pura fantasia, já a incerteza vem com réguas, com mapas, com manual e assistência técnica. Quem prefere a miragem, morre sedento. Só encontra água aquele que aprende a navegar o deserto.
Disse Cora Coralina, anos e mais anos atrás, eu era menina, nem entendi direito, que escrever era um sofrimento, uma tortura, e que ela própria não gostava de escrever. Mas, era mais forte que ela. Era um "es muss sein" de sua vida. E sendo assim, não há escapatória. Portanto, ela obedecia o algoz da escrita, e derramava suas linhas. "Ela é uma poetiza", dizia minha mãe, "transforma o triste em bonito, não em alegre, mas faz surgir beleza onde só havia dor".
"Amor volat undique"
A única coisa que ainda me surpreende é essa capacidade masoquista que a gente tem de amar qualquer coisa. Qualquer poça d'água de chuva que molhe nosso sapato novo é objeto de amor, porque de alguma forma tocou nossa vida. Não tenho nada no peito, sequer um soprinho tímido de ar ecoando no oco do meu tórax, e ainda assim, brota ali, na secura, um amor frutífero, frondoso e verde, um oásis na aridez solitária da alma. Verde de insistência, eu diria, não de esperança. Amor não dá esperança nenhuma. O Amor atira a gente do precipício da existência e nos dá a consciência triste do chão duro, de dar com a cara no muro, na porta, de dar murro em ponta de faca. E quebrados em mil pedacinhos, nossa vida, um caos, no fundo do poço, o que nos dói é somente o coração na presença da grandiosidade e da perfeição incompreensíveis de qualquer amor.
Pra não dizer que não falei das pérolas...
Sempre penso na concha teimosa que, cuspida pela maré, agarra-se ao restinho da correnteza e volta lá pra dentro do oceano. Porque é só isso que ela conhece e ama incondicionalmente. Apesar de nunca poder conhecer por inteiro o mar, ela se joga novamente pra dentro da imensidão e continua buscando o seu destino. E o mar, comovido, toda entrega incondicional é fatal, envolve a concha, também amoroso e, em resposta, continua empurrando-a pra areia, tentando mostrar-lhe o outro lado, desafiando-a a permanecer consigo nas incertezas da maré, nas correntes inconstantes, no meio do desconhecido. A concha sabe que viver é assim, é assumir todo risco, não adianta ter mapa, nem guarda-chuva, nem remédio pra dor de cabeça. É uma sucessão de ondas místicas e calmarias efêmeras. Mas, só assim, ganha-se o direito às pérolas.
Certo ou duvidoso?
Essas certezas que a gente acha que tem na vida, tudo mentira. Tudo miragem na aridez do destino. Certeza nenhuma. Vá lá, certeza da morte. Um dia isso tudo acaba. Pois é, era tudo incerto mesmo. Ninguém sabia onde ia dar, mas eventualmente deu nisso, nessas ondas místicas, nessas mãos invisíveis, nessas bússolas, nessas velas alçadas, nessas linhas cruzadas. De repente deu nessas milhas marinhas, nesses fusos horários, nesses meses de solidão. Porque apesar de incerto, é tudo contável, palpável, tangível. A certeza é pura fantasia, já a incerteza vem com réguas, com mapas, com manual e assistência técnica. Quem prefere a miragem, morre sedento. Só encontra água aquele que aprende a navegar o deserto.
Friday, October 10, 2003
Mundos Secretos - parte 2
Ajeitou o cabelo e 5 segundos do mais absoluto silêncio passaram lentamente. Paulo, com o olhar perdido, saiu do transe quando um "quer um pão de queijo" veio lá do fundo, como o som de um despertador de manhãzinha pescando nossa consciência lá do meio do sonho. Ele não conseguiu disfarçar. Ela ajeitou a pashmina novamente, se fazendo de desentendida, jogando uma ponta sobre o ombro esquerdo.
A pashmina era uma estratégia semiótica, (eufemismo para golpe sujo feminino). Era um querer esconder e querer mostrar ao mesmo tempo. A mensagem subliminar era de que embaixo daquele tecido retorcido havia algo tão precioso, tão exclusivo, que precisava ser recoberto com perfeita maciez e calor. Clara fingia que estava escondendo, quando na verdade, estava quase mostrando.
Aquela aura pluri-sensorial confundia Clara, ela queria entender aonde estava a coisa que fazia surgir nela um monte de corações pulsantes, em partes esquisitas do corpo, no estômago, na garganta... E perdia-se na fumaça que riscava o ar e se desfazia lenta em pequenas nuvens, nos cafés que perfumavam a mesa, num dente um pouco torto na arcada inferior do lado esquerdo de Paulo, nas mãos brancas de traços básicos, de palmas magras e dedos longos, que acenavam com o cigarro, ou nos "d"s e "t"s que ele pronunciava de uma maneira suave, à moda antiga. Curiosa, Clara pegou-se observando fixamente a boca dele.
Ele apoiou o cigarro no cinzeiro e debruçou-se sobre a mesa. Os corações espalhados em Clara marcavam passos fora de sintonia. A saliva sumia da boca. Até que, os olhos, que encontraram-se brevemente entre a fumaça perpendicular do cigarro e o vapor do café, desviaram-se num segundo:
-- Acho que está na hora, disse Paulo.
Os corações estancaram de uma vez. "Hora de quê?", pensou Clara. Sentiu-se ruborizar quando o viu tirar do bolso os malditos ingressos do cinema.
A pashmina era uma estratégia semiótica, (eufemismo para golpe sujo feminino). Era um querer esconder e querer mostrar ao mesmo tempo. A mensagem subliminar era de que embaixo daquele tecido retorcido havia algo tão precioso, tão exclusivo, que precisava ser recoberto com perfeita maciez e calor. Clara fingia que estava escondendo, quando na verdade, estava quase mostrando.
Aquela aura pluri-sensorial confundia Clara, ela queria entender aonde estava a coisa que fazia surgir nela um monte de corações pulsantes, em partes esquisitas do corpo, no estômago, na garganta... E perdia-se na fumaça que riscava o ar e se desfazia lenta em pequenas nuvens, nos cafés que perfumavam a mesa, num dente um pouco torto na arcada inferior do lado esquerdo de Paulo, nas mãos brancas de traços básicos, de palmas magras e dedos longos, que acenavam com o cigarro, ou nos "d"s e "t"s que ele pronunciava de uma maneira suave, à moda antiga. Curiosa, Clara pegou-se observando fixamente a boca dele.
Ele apoiou o cigarro no cinzeiro e debruçou-se sobre a mesa. Os corações espalhados em Clara marcavam passos fora de sintonia. A saliva sumia da boca. Até que, os olhos, que encontraram-se brevemente entre a fumaça perpendicular do cigarro e o vapor do café, desviaram-se num segundo:
-- Acho que está na hora, disse Paulo.
Os corações estancaram de uma vez. "Hora de quê?", pensou Clara. Sentiu-se ruborizar quando o viu tirar do bolso os malditos ingressos do cinema.
Thursday, October 09, 2003
Mundos Secretos - parte 1
(cont. de Indivíduos Adjacentes, Paulo e Clara - vários posts abaixo)
Chegou, sentou e dominou todo o campo de visão do rapaz. Estava enrolada em uma echarpe, ou xale (lá sabia ele o nome certo daquele pedaço de pano com franjinhas), de uma textura interessante que provocava insights sinestésicos em Paulo. Era a soma do tecido macio e quente, da pele branca da nuca que escapava à cobertura da gola e dos cabelos, naquele comprimento "estou deixando crescer", que Clara portava.
Os brincos emitiam sinais de luz que deveriam coincidir com código Morse que seu cérebro parecia compreender intuitivamente. De repente, ela correu a mão pelos cabelos, pondo o rosto de lado e, sem querer, a echarpe caiu dos ombros.
Paulo tentou, sem sucesso, resistir ao impulso de espiar dentro do decote voluptuoso da blusa de Clara. Mas, no final, os olhos se prenderam em outro detalhe, que não o colo almofadado dela: a marquinha do biquíni. Uma alça suavemente tatuada na pele alva, e mais alva ainda, era a fronteira entre o que todos podem ver e o mundo secreto, privado e exclusivo, a que só poucos, muito poucos, têm acesso, que se esconde por debaixo de simples tirinhas de pano. E que, na fantasia de Paulo, só ele poderia ver. E queria ver agora mais do que nunca. (Mas teria que terminar o café, dois pra ela, um pra ele, e enfrentar um filme do tipo circuito cultural de algum país obscuro, cujo título observa a fórmula artigo+substantivo e sempre recebe 5 estrelas de todos os jurados com críticas monossilábicas.)
Chegou, sentou e dominou todo o campo de visão do rapaz. Estava enrolada em uma echarpe, ou xale (lá sabia ele o nome certo daquele pedaço de pano com franjinhas), de uma textura interessante que provocava insights sinestésicos em Paulo. Era a soma do tecido macio e quente, da pele branca da nuca que escapava à cobertura da gola e dos cabelos, naquele comprimento "estou deixando crescer", que Clara portava.
Os brincos emitiam sinais de luz que deveriam coincidir com código Morse que seu cérebro parecia compreender intuitivamente. De repente, ela correu a mão pelos cabelos, pondo o rosto de lado e, sem querer, a echarpe caiu dos ombros.
Paulo tentou, sem sucesso, resistir ao impulso de espiar dentro do decote voluptuoso da blusa de Clara. Mas, no final, os olhos se prenderam em outro detalhe, que não o colo almofadado dela: a marquinha do biquíni. Uma alça suavemente tatuada na pele alva, e mais alva ainda, era a fronteira entre o que todos podem ver e o mundo secreto, privado e exclusivo, a que só poucos, muito poucos, têm acesso, que se esconde por debaixo de simples tirinhas de pano. E que, na fantasia de Paulo, só ele poderia ver. E queria ver agora mais do que nunca. (Mas teria que terminar o café, dois pra ela, um pra ele, e enfrentar um filme do tipo circuito cultural de algum país obscuro, cujo título observa a fórmula artigo+substantivo e sempre recebe 5 estrelas de todos os jurados com críticas monossilábicas.)
Tuesday, September 30, 2003
O problema da "volta e volta" é que toda volta pressupõe uma ida. Logo "volta e volta" tem "ida e ida". E eu continuo indo, mas com vontade de voltar. Faz sentido? Não. Ainda bem. É bom sinal. Sentido não ajuda em nada, aliás atrapalha. Melhor amortecê-lo e retomar o caminho aberto na navalha dos sem-sentidos da vida. Não é sentido, é direção que se quer. É uma bússola-oráculo acoplada a um pára-quedas e um relógio despertador (todos auto-ajustáveis) pra gente navegar com toda precisão poética. Afinal de contas, o que mais é preciso na vida? Nada. No entanto, se me fosse permitida uma extravagância, uma única, queria um gato.
Wednesday, September 24, 2003
Felicidade tarja-preta
Uma senhora com olhar triste diz que não tem vontade de fazer nada. Um rapaz de trinta anos com as mãos na cabeça confessa que não consegue se concentrar em nada. Uma mocinha em preto e branco chorosa relata "eu já fui feliz, eu lembro que um dia já pude sentir isso".
Em seguida, a câmera corta para a senhora brincando com seus netos, o rapaz correndo na praia acompanhado de seu golden retriever e a mocinha abraçando seu namorado. E o narrador em off, depois de anunciar o composto ativo e pedir para os espectadores comentarem sobre o remédio com seus médicos, adverte efeitos colaterais: vômitos, diarréias, dores de cabeça, sonolência, perda do desejo sexual. Mas, de maneira muito segura, o rapaz olha pra câmera e afirma "Eu posso ser feliz novamente!".
Desculpem-me, mas sou só eu que não consigo enxergar felicidade e diarréia no mesmo dia? (Pra não mencionar a perda do desejo sexual...)
Minha teoria é a seguinte, as pessoas em geral são divididas em dois grandes grupos quando se trata de felicidade: os que acham que a felicidade está no passado (ou melhor, esteve) e os que acham que a felicidade está no futuro. A turma do "éramos felizes e não sabíamos" precisa de remédio mesmo. Porque um dia eles já foram do segundo grupo mas daí, desistiram. O "amanhã será um novo dia" comprende o pessoal que ainda está tentando. No entanto, esse grupo se subdivide em dois outros, pois muitos integrantes desse grupo eram do primeiro e já estão medicados.
E o outro sub-grupo dos que não estão na tarja preta? São a faixa do contraste. Sim, aquela opção entre os controles de Brilho e Cor de qualquer monitor de computador ou televisão. Ninguém sabe direito pra que serve, mas o fato de ele ficar no meio já diz muito: é pra equilibrar. Nem muito, nem pouco. Nem só brilho, nem só cor.
É o seguinte, depois do remédio, a vida é toda de um só tom. Tudo lindo. Tudo bem. Você pisa em cocô de cachorro, você bate o carro, você perde o emprego e você pede uma pizza, tudo no mesmo tom.
O pessoal do contraste fica puto, triste pra caramba, chora e depois sai pra tomar cerveja com os amigos e rir das agruras da vida. Se apaixona loucamente, perde o chão, as estribeiras e se tomam um pé na bunda, tristes, frustrados, com dor-de-cotovelo, dizem "ah, eu arranjo outro(a)". Felicidade só existe com tristeza. Uma é o contraste da outra. E, como para Parmênides, que agrupou tudo no mundo em pares de opostos, elas são inalienáveis: uma só é quando a outra deixa de ser. Para sabê-las é preciso, não só conhecê-las, mas, ter as duas.
Às vezes é mais fácil entender alguma coisa pelo seu oposto. E sempre acreditar que há oposto.
Em seguida, a câmera corta para a senhora brincando com seus netos, o rapaz correndo na praia acompanhado de seu golden retriever e a mocinha abraçando seu namorado. E o narrador em off, depois de anunciar o composto ativo e pedir para os espectadores comentarem sobre o remédio com seus médicos, adverte efeitos colaterais: vômitos, diarréias, dores de cabeça, sonolência, perda do desejo sexual. Mas, de maneira muito segura, o rapaz olha pra câmera e afirma "Eu posso ser feliz novamente!".
Desculpem-me, mas sou só eu que não consigo enxergar felicidade e diarréia no mesmo dia? (Pra não mencionar a perda do desejo sexual...)
Minha teoria é a seguinte, as pessoas em geral são divididas em dois grandes grupos quando se trata de felicidade: os que acham que a felicidade está no passado (ou melhor, esteve) e os que acham que a felicidade está no futuro. A turma do "éramos felizes e não sabíamos" precisa de remédio mesmo. Porque um dia eles já foram do segundo grupo mas daí, desistiram. O "amanhã será um novo dia" comprende o pessoal que ainda está tentando. No entanto, esse grupo se subdivide em dois outros, pois muitos integrantes desse grupo eram do primeiro e já estão medicados.
E o outro sub-grupo dos que não estão na tarja preta? São a faixa do contraste. Sim, aquela opção entre os controles de Brilho e Cor de qualquer monitor de computador ou televisão. Ninguém sabe direito pra que serve, mas o fato de ele ficar no meio já diz muito: é pra equilibrar. Nem muito, nem pouco. Nem só brilho, nem só cor.
É o seguinte, depois do remédio, a vida é toda de um só tom. Tudo lindo. Tudo bem. Você pisa em cocô de cachorro, você bate o carro, você perde o emprego e você pede uma pizza, tudo no mesmo tom.
O pessoal do contraste fica puto, triste pra caramba, chora e depois sai pra tomar cerveja com os amigos e rir das agruras da vida. Se apaixona loucamente, perde o chão, as estribeiras e se tomam um pé na bunda, tristes, frustrados, com dor-de-cotovelo, dizem "ah, eu arranjo outro(a)". Felicidade só existe com tristeza. Uma é o contraste da outra. E, como para Parmênides, que agrupou tudo no mundo em pares de opostos, elas são inalienáveis: uma só é quando a outra deixa de ser. Para sabê-las é preciso, não só conhecê-las, mas, ter as duas.
Às vezes é mais fácil entender alguma coisa pelo seu oposto. E sempre acreditar que há oposto.
Monday, September 22, 2003
Big Mother - reality cam
9:21:32 - Mâmi Panda sai da toca. Baby fica lá se remexendo no chão, parece um pãozinho frânces com perninhas e bracinhos pretos.
9:45:15 - Mâmi volta, hora da mamada. Depois um banho de lambidas. Capaz de despertar "guti-cutis" até nos mais durões.
10:47:54 - Mâmi saí de novo e o Baby Panda dá seus primeiros passos meio desengonçados.
10:56:23 - Mâmi volta, pega ele com a boca e põe ele pertinho da saída da toca pra ele tomar sol!!!
Estou viciada.
Confira e depois me diga senão é tudo nessa vida...
Agora, se eu fosse você não perderia o susto que a veterinária toma ao examinar o pandinha.
9:45:15 - Mâmi volta, hora da mamada. Depois um banho de lambidas. Capaz de despertar "guti-cutis" até nos mais durões.
10:47:54 - Mâmi saí de novo e o Baby Panda dá seus primeiros passos meio desengonçados.
10:56:23 - Mâmi volta, pega ele com a boca e põe ele pertinho da saída da toca pra ele tomar sol!!!
Estou viciada.
Confira e depois me diga senão é tudo nessa vida...
Agora, se eu fosse você não perderia o susto que a veterinária toma ao examinar o pandinha.
Tuesday, September 09, 2003
Volta e volta
-- Quero uma passagem por favor.
-- Ida e volta?
-- Não, não. Volta e volta.
Deixa eu explicar: eu volto pro Brasil daqui de Miami, mas como agora eu moro em Miami, depois eu volto pra Miami outra vez.
Difícil entender que agora é uma "ida" ao Brasil. E a gente que acha que vai esquecer logo de tudo com as maravilhas de consumo do Tio Sam, se engana e paga a língua. Não há M&M de peanut butter suficiente nesse país inteiro que me faça sentir em casa. Tenho um quarto e um banheiro. Acampamento de verão. Fico achando que dia desses as férias vão acabar e meus pais vão estar me esperando do lado de fora do carro na porta dos alojamentos.
(digressão metafísica: Mas será que um dia desses mesmo, quando as férias acabarem, as férias aqui da minha alma neste planeta, não vai ser assim que eu vou chegar lá do outro lado? O pai e a mãe acenando e eu correndo pra abraçá-los...esse é o céu que eu imagino. Difícil deve ser passar pela vida, ou pelas férias, achando que nada tem volta. Ou que tudo acaba e pronto: final.)
A gente sempre volta. E eu sempre voltando pra lá e pra cá, cada vez num lugar diferente. Tanto faz o lugar, o importante é só voltar de peito aberto, beijo, abraço. E quando a gente ama está sempre voltando. Pode ser que a gente não volte fisicamente, mas o lugar volta pra gente e quem a gente ama, também.
-- Ida e volta?
-- Não, não. Volta e volta.
Deixa eu explicar: eu volto pro Brasil daqui de Miami, mas como agora eu moro em Miami, depois eu volto pra Miami outra vez.
Difícil entender que agora é uma "ida" ao Brasil. E a gente que acha que vai esquecer logo de tudo com as maravilhas de consumo do Tio Sam, se engana e paga a língua. Não há M&M de peanut butter suficiente nesse país inteiro que me faça sentir em casa. Tenho um quarto e um banheiro. Acampamento de verão. Fico achando que dia desses as férias vão acabar e meus pais vão estar me esperando do lado de fora do carro na porta dos alojamentos.
(digressão metafísica: Mas será que um dia desses mesmo, quando as férias acabarem, as férias aqui da minha alma neste planeta, não vai ser assim que eu vou chegar lá do outro lado? O pai e a mãe acenando e eu correndo pra abraçá-los...esse é o céu que eu imagino. Difícil deve ser passar pela vida, ou pelas férias, achando que nada tem volta. Ou que tudo acaba e pronto: final.)
A gente sempre volta. E eu sempre voltando pra lá e pra cá, cada vez num lugar diferente. Tanto faz o lugar, o importante é só voltar de peito aberto, beijo, abraço. E quando a gente ama está sempre voltando. Pode ser que a gente não volte fisicamente, mas o lugar volta pra gente e quem a gente ama, também.
Tuesday, September 02, 2003
... tem que ter letra de música!
Disseram que eu voltei americanizada
Com o "burro" do dinheiro
Que estou muito rica,
Que não suporto mais o breque do pandeiro
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca.
Disseram que com as mãos estou preocupada
E corre por aí -- que eu sei -- um certo zum-zum
Que já não tenho molho, ritmo, nem nada
E dos balangandans, já não existe mais nenhum.
Mas prá cima de mim, prá que tanto veneno
Eu posso lá voltar americanizada
Eu que nasci com o samba, e vivo no terreiro
Tocando a noite inteira, a velha batucada.
Nas rodas de malandros, minhas preferidas
Eu digo mesmo que te amo, e nunca "I love you"
Enquanto houver Brasil,
Nas horas das comidas
Eu sou do camarão ensopadinho com "xuxu."
Disseram que eu voltei americanizada
Com o "burro" do dinheiro
Que estou muito rica,
Que não suporto mais o breque do pandeiro
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca.
Disseram que com as mãos estou preocupada
E corre por aí -- que eu sei -- um certo zum-zum
Que já não tenho molho, ritmo, nem nada
E dos balangandans, já não existe mais nenhum.
Mas prá cima de mim, prá que tanto veneno
Eu posso lá voltar americanizada
Eu que nasci com o samba, e vivo no terreiro
Tocando a noite inteira, a velha batucada.
Nas rodas de malandros, minhas preferidas
Eu digo mesmo que te amo, e nunca "I love you"
Enquanto houver Brasil,
Nas horas das comidas
Eu sou do camarão ensopadinho com "xuxu."
Wednesday, August 27, 2003
Paulo e Clara: um a um
Foi pela rua, peito estufado, assobiando o hino nacional. Era sua irônica trilha sonora, música de exaltação. Assobiou quando comprara o primeiro carro, quando entrara em seu primeiro apartamento e sempre que trocava de empregos, no primeiro dia de trabalho, ia assobiando no caminho.
Chegara mais cedo, jornal debaixo do braço, dobrado nas palavras-cruzadas, comprou cigarros e veio andando em passo relaxado observando o café. 'Mesa do lado de fora pra duas pessoas'. Um restinho de sol reluzia na beirada da mesa esquentando o lugar oposto ao de Paulo. Pediu um cinzeiro, acendeu um cigarro deixando-o no canto da boca e, quando começava a limpar os óculos enxergou Clara, embaçada, no fundo do quadro, vestida de preto.
Clara marchou rua acima, amaldiçoando os sapatos que escolhera. (Entre o bonito e o confortável, ficou com o bonito, é claro.) Percebeu, depois de dois quarteirões de cantadas infames, que o seu decote estava exagerado e conforme ela andava, ele se mexia, para deleite dos transeuntes daquela tarde de sábado. (Que vergonha meu Deus, fazer o quê?) Entrou no Conjunto Nacional e avistou Paulo. Sentiu-se ruborizar. Esquivou-se, mesclando-se a um grupo de adolescentes-cabeça e entrou na primeira loja feminina que encontrou. Providenciou uma pashmina e enrolou-se. Aproveitou para retocar o batom, chupar a barriga em frente ao espelho e ensaiar um sorriso ou cumprimento. Sentiu-se ridícula na vista das vendedoras da loja, afinal de contas falar sozinha era vergonhoso. Pagou e saiu.
Chegara mais cedo, jornal debaixo do braço, dobrado nas palavras-cruzadas, comprou cigarros e veio andando em passo relaxado observando o café. 'Mesa do lado de fora pra duas pessoas'. Um restinho de sol reluzia na beirada da mesa esquentando o lugar oposto ao de Paulo. Pediu um cinzeiro, acendeu um cigarro deixando-o no canto da boca e, quando começava a limpar os óculos enxergou Clara, embaçada, no fundo do quadro, vestida de preto.
Clara marchou rua acima, amaldiçoando os sapatos que escolhera. (Entre o bonito e o confortável, ficou com o bonito, é claro.) Percebeu, depois de dois quarteirões de cantadas infames, que o seu decote estava exagerado e conforme ela andava, ele se mexia, para deleite dos transeuntes daquela tarde de sábado. (Que vergonha meu Deus, fazer o quê?) Entrou no Conjunto Nacional e avistou Paulo. Sentiu-se ruborizar. Esquivou-se, mesclando-se a um grupo de adolescentes-cabeça e entrou na primeira loja feminina que encontrou. Providenciou uma pashmina e enrolou-se. Aproveitou para retocar o batom, chupar a barriga em frente ao espelho e ensaiar um sorriso ou cumprimento. Sentiu-se ridícula na vista das vendedoras da loja, afinal de contas falar sozinha era vergonhoso. Pagou e saiu.
Tuesday, August 19, 2003
Silêncio pe(r)dido
Botou os dedos sobre meus lábios e pressionou suavemente, pedindo silêncio. Eu obedeci.
Logo, acariciou meus cabelos, deixou a mão pousar na minha nuca e me olhou longamente. Eu, calada, lhe implorei um beijo. Quebrei o silêncio com meu suspiro insatisfeito. Mas, suas mãos correram em socorro das minhas, se entrelaçaram e o gemido, preso na garganta, esmoeceu e perdeu-se na expiração um pouco triste, um pouco nervosa.
Enquanto isso, os corpos se entendiam, as mãos encontravam outros pastos e todo pensamento e palavra se desfazia em suor. Só existia nosso olhar pontilhado e cada vez que uma piscada era mais longa, sua ou minha, eu sentia saudades de você.
Enfim, quando a escuridão cedeu ao seu olhar azul-clarinho, palavras roubadas perguntaram em silêncio 'o que aconteceu?'. Mas, no lugar da minha voz, tuas mãos emolduraram meu rosto, o polegar apagou docemente uma lágrima e me refiz em você. E sinto agora, sorrateiros, teus dedos eternos amortecendo meus soluços furtivos e dúvidas depois da tua partida.
Logo, acariciou meus cabelos, deixou a mão pousar na minha nuca e me olhou longamente. Eu, calada, lhe implorei um beijo. Quebrei o silêncio com meu suspiro insatisfeito. Mas, suas mãos correram em socorro das minhas, se entrelaçaram e o gemido, preso na garganta, esmoeceu e perdeu-se na expiração um pouco triste, um pouco nervosa.
Enquanto isso, os corpos se entendiam, as mãos encontravam outros pastos e todo pensamento e palavra se desfazia em suor. Só existia nosso olhar pontilhado e cada vez que uma piscada era mais longa, sua ou minha, eu sentia saudades de você.
Enfim, quando a escuridão cedeu ao seu olhar azul-clarinho, palavras roubadas perguntaram em silêncio 'o que aconteceu?'. Mas, no lugar da minha voz, tuas mãos emolduraram meu rosto, o polegar apagou docemente uma lágrima e me refiz em você. E sinto agora, sorrateiros, teus dedos eternos amortecendo meus soluços furtivos e dúvidas depois da tua partida.
Thursday, August 07, 2003
Paulo:Clara - Frase veemente
-- Alô.
-- 'Frase veemente de proibição', 11 letras.
Clara gargalhou sonoramente.
-- Comprei uma revista de palavras-cruzadas. Nível Cobrão. Estou viciado.
Gargalhadas de novo.
-- Posso perceber.
-- Aposto que você não adivinha.
-- Me dá algumas letras aí.
-- A segunda letra é 'o', a quarta é 'c' e a última é 's'.
-- Hmmm... Só isso?
-- Só. Posso falar?
Clara fez muxoxos de quem estava raciocinando.
-- ...veemente... proibição...
-- Você não vai adivinhar. Não faz o menor sentido. Nem adianta querer queimar os neurônios. A dica não tem nada a ver com a resposta, te juro.
-- Então diz.
-- Te digo o seguinte: vai pensando, hoje é quarta, te dou três dias, no sábado, lá pelas três da tarde, no Conjunto Nacional, eu te digo.
-- 'Frase veemente de proibição', 11 letras.
Clara gargalhou sonoramente.
-- Comprei uma revista de palavras-cruzadas. Nível Cobrão. Estou viciado.
Gargalhadas de novo.
-- Posso perceber.
-- Aposto que você não adivinha.
-- Me dá algumas letras aí.
-- A segunda letra é 'o', a quarta é 'c' e a última é 's'.
-- Hmmm... Só isso?
-- Só. Posso falar?
Clara fez muxoxos de quem estava raciocinando.
-- ...veemente... proibição...
-- Você não vai adivinhar. Não faz o menor sentido. Nem adianta querer queimar os neurônios. A dica não tem nada a ver com a resposta, te juro.
-- Então diz.
-- Te digo o seguinte: vai pensando, hoje é quarta, te dou três dias, no sábado, lá pelas três da tarde, no Conjunto Nacional, eu te digo.
Da série "palpite nunca é demais"
Conversa com Glória Perez:
-- Eshcuta, (sotaque carioca), acho que a Regina Duarrrte ficaria ótima como Sofia. O negócio é que eshtá faltando aí no seu teishto uma cerrrta pluralidade étnica, sabe, unsh ciganosh, unsh judeush orrrtodoxosh, um pessoal árabe, quem sabe unsh japonesesh? Aí vira novela dash oito. Com direção de Daniel Filho e tudo maish. E tudo maish.
-- Eshcuta, (sotaque carioca), acho que a Regina Duarrrte ficaria ótima como Sofia. O negócio é que eshtá faltando aí no seu teishto uma cerrrta pluralidade étnica, sabe, unsh ciganosh, unsh judeush orrrtodoxosh, um pessoal árabe, quem sabe unsh japonesesh? Aí vira novela dash oito. Com direção de Daniel Filho e tudo maish. E tudo maish.
Wednesday, August 06, 2003
Reza brava
Santa Periquita do Bigode Loiro, Socorrei-me!
Odeio mudanças. Odeio, odeio. Queria o template à lá Mondrian para o resto da minha vida. Pra sempre. Mas ele sumiu da minha área de manutenção e do Blogger como um todo. Foi bom enquanto durou e que não seja eterno posto que é blogging tool gratuita, certo?
Por favor freguesia, o gerente se desculpa pelo mau-jeito mas as mudanças estão feitas sempre com o foco no senhor leitor, "client driven", e dentro em breve o meu, o seu, o nosso blog estará de volta ao "normal diferente", tá?
Servimos bem para sempre servir.
Odeio mudanças. Odeio, odeio. Queria o template à lá Mondrian para o resto da minha vida. Pra sempre. Mas ele sumiu da minha área de manutenção e do Blogger como um todo. Foi bom enquanto durou e que não seja eterno posto que é blogging tool gratuita, certo?
Por favor freguesia, o gerente se desculpa pelo mau-jeito mas as mudanças estão feitas sempre com o foco no senhor leitor, "client driven", e dentro em breve o meu, o seu, o nosso blog estará de volta ao "normal diferente", tá?
Servimos bem para sempre servir.
Friday, August 01, 2003
Mundos Paralelos: antes da história.
Com a barriga e as pernas pro alto, uma persiana entreaberta e um livro extremamente chato no colo, Sofia observava entediada aquele sábado esquisito.
Sentia-se um monstro, uma sequóia secular gigante e presa eternamente ao chão. Já não alcançava os pés e não conseguia amarrar seus próprios sapatos. E um monte de coisas que ninguém conta sobre a gravidez a surpreendiam cada manhã. Hemorróidas, gases, espinhas, o leite escorrendo do seio prematuramente e as canelas inchadas. Envergonhava-se de estar querendo brigar com a natureza, que deveria ser mais sábia, que lhe dava esse prazer supremo de gerar uma nova vida. Arrependia-se com um ataque de falta de ar, vontade de fazer xixi, de comer algum doce, sono e dor nas costas. Era tudo difícil, vagaroso, esquisito. Sentia um pouco de tudo, dor em todo lugar, enjôo, mal estar e fome. E sentia remorso de novo. Não precisava sentir remorso. Mas, sem entender direito o seu coração, Sofia deprimia-se levemente de tanta estranheza.
Sentou-se de novo com uma xícara de chá, um cobertor, um pão com manteiga, o mesmo livro e antes que se concentrasse, batidas parcas na porta a interromperam.
Carregou-se até o olho mágico, com as mãos apoiadas nas costas, como todas as mulheres andam depois dos 7 meses de gravidez e reconheceu rapidamente aqueles olhões vermelhos e o nariz inchado.
-- Que que aconteceu Clarinha...
Clara não conseguiu responder. Entrou com um pacote de restaurante na mão. Sofia entendeu tudo. Uma não falou nada pra outra, porém sabiam-se telepaticamente, era infálivel. Sofia a pôs sentada no sofá. Pôs a xícara de chá na mão dela. Ofereceu de guardar o pacote do restaurante na geladeira. Depois sentou-se pra dividir o pão com manteiga e tudo mais naquela tarde de sábado esquisita.
Com a barriga e as pernas pro alto, uma persiana entreaberta e um livro extremamente chato no colo, Sofia observava entediada aquele sábado esquisito.
Sentia-se um monstro, uma sequóia secular gigante e presa eternamente ao chão. Já não alcançava os pés e não conseguia amarrar seus próprios sapatos. E um monte de coisas que ninguém conta sobre a gravidez a surpreendiam cada manhã. Hemorróidas, gases, espinhas, o leite escorrendo do seio prematuramente e as canelas inchadas. Envergonhava-se de estar querendo brigar com a natureza, que deveria ser mais sábia, que lhe dava esse prazer supremo de gerar uma nova vida. Arrependia-se com um ataque de falta de ar, vontade de fazer xixi, de comer algum doce, sono e dor nas costas. Era tudo difícil, vagaroso, esquisito. Sentia um pouco de tudo, dor em todo lugar, enjôo, mal estar e fome. E sentia remorso de novo. Não precisava sentir remorso. Mas, sem entender direito o seu coração, Sofia deprimia-se levemente de tanta estranheza.
Sentou-se de novo com uma xícara de chá, um cobertor, um pão com manteiga, o mesmo livro e antes que se concentrasse, batidas parcas na porta a interromperam.
Carregou-se até o olho mágico, com as mãos apoiadas nas costas, como todas as mulheres andam depois dos 7 meses de gravidez e reconheceu rapidamente aqueles olhões vermelhos e o nariz inchado.
-- Que que aconteceu Clarinha...
Clara não conseguiu responder. Entrou com um pacote de restaurante na mão. Sofia entendeu tudo. Uma não falou nada pra outra, porém sabiam-se telepaticamente, era infálivel. Sofia a pôs sentada no sofá. Pôs a xícara de chá na mão dela. Ofereceu de guardar o pacote do restaurante na geladeira. Depois sentou-se pra dividir o pão com manteiga e tudo mais naquela tarde de sábado esquisita.
Reality check: o preço que se paga...
Moça bonita não paga, mas também não leva!
Cheguei no caixa e até a moça que estava do meu lado se assustou: "Oops! That's an expensive pepper!"
Indeed. Mas aqui é assim. Tudo que é natural vem de outro país. Ou você acha que gringo planta alguma coisa? Planta nada. Ah, bom, só grama no jardim. In the backyard. E isso eles cultivam religiosamente. Tem uma gama longuíssima de produtos para proteger a grama, ora do frio, ora do calor, ora das pragas de jardim, ora do dono descuidado mesmo. Tem todos aqueles cortadores de grama hi-tech (não esquecer daquele famoso filme de ficção científica "The lawnmower man"). Ou seja, grama não se come. Conclusão: manda importar tudo do México mesmo. Mas daí, tem um limão triste, com a moral lá em baixo, que não nasceu pra ser caipirinha, sabe... E você perambula sem graça pelas gôndolas de vegetais, esperando se apaixonar loucamente por um melão, que um papaia lhe chame a atenção, que os tomates gritem "Marinara" em uníssono. Mas não, não tem jeito, nada pode chegar aos pés daquele monte de homem meio sem dentes, suados, gritando que a dúzia da abobrinha baixou, na barraquinha de lona laranja armada em frente a kômbi. Nada nunca se comparará ao colorido alegre do homem das panelas, aquele que concerta cabos, que vende a borrachinha do liquidificador, que amola facas, canivetes, tesouras e alicatinhos de unha. Do ladinho da barraca da senhora que vende bonequinhas plásticas, que vêm com uma mamadeirinha e um pente e fazem xixi. Logo ali na frente do homem do peixe - geralmente japonês - aquele cheiro forte nem incomoda quem passa, porque geralmente todos os transeuntes trazem consigo um pastel soltando fumacinha de tão quente!
Aqui, a gente olha a cenoura pálida, coitadinha, e tem vontade de botar ela no sol pra bronzear. Um abacaxi sem auto-estima nenhuma, que já vem descascado num potinho plástico, despido da sua carapaça imponente - já nem é abacaxi. Não vou nem falar da maçã. Se os irmãos Grimm tivessem morado aqui, a Branca de Neve teria sido envenenada com outra coisa qualquer, talvez um sanduíche de pasta de amendoim com geléia, ou um donut reluzindo de tanta gordura, da Krispy Kréme. (Não precisava nem por feitiçaria, assim que ela mordesse o donut ia desmaiar de asia e o Príncipe Encantado chegaria em seu cavalo branco trazendo Engov!)
1 pimentão por 1,68 dólares, madame, vai levar?
Vou sim! vou resgatá-lo deste orfanato de legumes, verduras e frutas onde ele estava fadado a terminar sua curta vida vegetal.
Já na minha panela, cortadinho, temperadinho, misturadinho com todo o resto, tava ele lá, o pimentão, feliz da vida, recuperado de todos os complexos de inferioridade. E eu jantei muito bem, obrigada. À lá brasileira.
Moça bonita não paga, mas também não leva!
Cheguei no caixa e até a moça que estava do meu lado se assustou: "Oops! That's an expensive pepper!"
Indeed. Mas aqui é assim. Tudo que é natural vem de outro país. Ou você acha que gringo planta alguma coisa? Planta nada. Ah, bom, só grama no jardim. In the backyard. E isso eles cultivam religiosamente. Tem uma gama longuíssima de produtos para proteger a grama, ora do frio, ora do calor, ora das pragas de jardim, ora do dono descuidado mesmo. Tem todos aqueles cortadores de grama hi-tech (não esquecer daquele famoso filme de ficção científica "The lawnmower man"). Ou seja, grama não se come. Conclusão: manda importar tudo do México mesmo. Mas daí, tem um limão triste, com a moral lá em baixo, que não nasceu pra ser caipirinha, sabe... E você perambula sem graça pelas gôndolas de vegetais, esperando se apaixonar loucamente por um melão, que um papaia lhe chame a atenção, que os tomates gritem "Marinara" em uníssono. Mas não, não tem jeito, nada pode chegar aos pés daquele monte de homem meio sem dentes, suados, gritando que a dúzia da abobrinha baixou, na barraquinha de lona laranja armada em frente a kômbi. Nada nunca se comparará ao colorido alegre do homem das panelas, aquele que concerta cabos, que vende a borrachinha do liquidificador, que amola facas, canivetes, tesouras e alicatinhos de unha. Do ladinho da barraca da senhora que vende bonequinhas plásticas, que vêm com uma mamadeirinha e um pente e fazem xixi. Logo ali na frente do homem do peixe - geralmente japonês - aquele cheiro forte nem incomoda quem passa, porque geralmente todos os transeuntes trazem consigo um pastel soltando fumacinha de tão quente!
Aqui, a gente olha a cenoura pálida, coitadinha, e tem vontade de botar ela no sol pra bronzear. Um abacaxi sem auto-estima nenhuma, que já vem descascado num potinho plástico, despido da sua carapaça imponente - já nem é abacaxi. Não vou nem falar da maçã. Se os irmãos Grimm tivessem morado aqui, a Branca de Neve teria sido envenenada com outra coisa qualquer, talvez um sanduíche de pasta de amendoim com geléia, ou um donut reluzindo de tanta gordura, da Krispy Kréme. (Não precisava nem por feitiçaria, assim que ela mordesse o donut ia desmaiar de asia e o Príncipe Encantado chegaria em seu cavalo branco trazendo Engov!)
1 pimentão por 1,68 dólares, madame, vai levar?
Vou sim! vou resgatá-lo deste orfanato de legumes, verduras e frutas onde ele estava fadado a terminar sua curta vida vegetal.
Já na minha panela, cortadinho, temperadinho, misturadinho com todo o resto, tava ele lá, o pimentão, feliz da vida, recuperado de todos os complexos de inferioridade. E eu jantei muito bem, obrigada. À lá brasileira.
Thursday, July 24, 2003
Indíviduos Perpendiculares.
Pediu café. Café sempre pede um cigarro. Revistou-se. Pronto, perdera mais um isqueiro. 'Garçon, fósforos'. Deu a primeira tragada. Deixou o cigarro pousando entre os lábios, meio à lá Delon e tirou os óculos. Concentrou-se em polir as lentes com um guardanapo daqueles vagabundos que espalham a sujeira. Estava se preparando e logo avistou-a: livro em mãos, pedindo 2 cafés. 'Dois cafés?' se perguntou receoso de que ela estivesse esperando alguém. Assistiu a moça tomando o primeiro, sem açucar, devagarinho enquanto folheava o livro.
'Oi, meu nome é Paulo, prazer', 'Prazer, Paulo', 'Esta cadeira esta ocupada?' Tudo soava falso, cantadas baratas, e a moça começava o seu segundo cafezinho (que alívio, os dois eram pra ela), colocava o livro fechado sobre a mesa e Paulo sabia que ela estava se preparando para ir embora. A moça correu os olhos pelo restaurante, pediu a conta, guardou o livro e foi até o banheiro. Paulo deu a última tragada, esmagou a bituquinha no cinzeiro e, desesperançoso, recolheu o jornal de maneira desorganizada e foi-se também. Começava a chover, eram às 14h25 de uma quinta-feira qualquer.
-- Rusga!
Virou rapidamente.
-- Rusga: briga de marido e mulher com 5 letras. E 'altar de umbanda' é "aca" -- disse a moça estendendo-lhe o caderno do jornal que Paulo deixara pra trás.
Paulo, surpreso, lacônico e principalmente nervoso, respondeu:
-- ...Rusga, aca... Paulo, prazer.
(Não, definitivamente de todas as frases que ele mentalmente ensaiara "rusga-aca-paulo-prazer" não era a melhor. O que era aquilo? Código? É impressionante que todas as 3 décadas de vida até ali não siginificavam nada e Paulo engasgava como um pré-adolescente roubando seu primeiro beijo da primeira namoradinha.)
Por falta de espirituosidade resolveu fumar, virou a caixa de Marlboro na direção dela e ela aceitou um cigarro.
-- Prazer, Clara. Minha vó era viciada em palavras-cruzadas... Aca aparece pelo menos 8 vezes em cada edição da "Coquetel".
Paulo sorriu moderamente enquanto acendia o cigarro dela. E ela continuou:
-- E sempre me pergunto de onde tiraram essa porra de "aca".
Engoliu a frase quase que no meio e depois perguntou pra ele:
-- Você não se importa com palavrão, né?
Paulo adorou a pergunta e achou a maior graça na moça conversadora.
-- Hmm... Se eu fosse mais adepto dessa porra de aca, quem sabe...
Ela riu e Paulo abriu seu guarda-chuvas orgulhoso de ter extraído de seu cérebro quase catatônico alguma coisa engraçada. Ofereceu-lhe o braço e deu-lhe uma carona até o outro lado da rua, um edifício médico e Paulo achou melhor não perguntar o que ela faria ali. Mas, quando estavam prontos para irem cada um pro seu lado da história, de volta aos universos paralelos incomunicáveis, como há alguns minutos atrás naquele bar, Paulo arriscou:
-- Escuta, Clara, e se eu precisar de ajuda com o resto das palavras-cruzadas, tem algum telefone onde eu possa te encontrar?
E ela entrou no prédio e ele entrou na história.
*******
Algum leitor atencioso poderá dizer que a saída do papel acidentalmente deixado para trás por um personagem e resgatado por outro, já foi usada antes em outro conto meu. Daí, eu poderia alegar a velha cafajestada "nada se cria...", mas vou dar a cara pra bater porque foi irresistível! Caro leitor, essa saída me pareceu tão alegórica, tão perfeita, ainda mais sendo o caderno de palavras-cruzadas no dia em que as primeiras palavras foram cruzadas entre os dois personagens...
Pediu café. Café sempre pede um cigarro. Revistou-se. Pronto, perdera mais um isqueiro. 'Garçon, fósforos'. Deu a primeira tragada. Deixou o cigarro pousando entre os lábios, meio à lá Delon e tirou os óculos. Concentrou-se em polir as lentes com um guardanapo daqueles vagabundos que espalham a sujeira. Estava se preparando e logo avistou-a: livro em mãos, pedindo 2 cafés. 'Dois cafés?' se perguntou receoso de que ela estivesse esperando alguém. Assistiu a moça tomando o primeiro, sem açucar, devagarinho enquanto folheava o livro.
'Oi, meu nome é Paulo, prazer', 'Prazer, Paulo', 'Esta cadeira esta ocupada?' Tudo soava falso, cantadas baratas, e a moça começava o seu segundo cafezinho (que alívio, os dois eram pra ela), colocava o livro fechado sobre a mesa e Paulo sabia que ela estava se preparando para ir embora. A moça correu os olhos pelo restaurante, pediu a conta, guardou o livro e foi até o banheiro. Paulo deu a última tragada, esmagou a bituquinha no cinzeiro e, desesperançoso, recolheu o jornal de maneira desorganizada e foi-se também. Começava a chover, eram às 14h25 de uma quinta-feira qualquer.
-- Rusga!
Virou rapidamente.
-- Rusga: briga de marido e mulher com 5 letras. E 'altar de umbanda' é "aca" -- disse a moça estendendo-lhe o caderno do jornal que Paulo deixara pra trás.
Paulo, surpreso, lacônico e principalmente nervoso, respondeu:
-- ...Rusga, aca... Paulo, prazer.
(Não, definitivamente de todas as frases que ele mentalmente ensaiara "rusga-aca-paulo-prazer" não era a melhor. O que era aquilo? Código? É impressionante que todas as 3 décadas de vida até ali não siginificavam nada e Paulo engasgava como um pré-adolescente roubando seu primeiro beijo da primeira namoradinha.)
Por falta de espirituosidade resolveu fumar, virou a caixa de Marlboro na direção dela e ela aceitou um cigarro.
-- Prazer, Clara. Minha vó era viciada em palavras-cruzadas... Aca aparece pelo menos 8 vezes em cada edição da "Coquetel".
Paulo sorriu moderamente enquanto acendia o cigarro dela. E ela continuou:
-- E sempre me pergunto de onde tiraram essa porra de "aca".
Engoliu a frase quase que no meio e depois perguntou pra ele:
-- Você não se importa com palavrão, né?
Paulo adorou a pergunta e achou a maior graça na moça conversadora.
-- Hmm... Se eu fosse mais adepto dessa porra de aca, quem sabe...
Ela riu e Paulo abriu seu guarda-chuvas orgulhoso de ter extraído de seu cérebro quase catatônico alguma coisa engraçada. Ofereceu-lhe o braço e deu-lhe uma carona até o outro lado da rua, um edifício médico e Paulo achou melhor não perguntar o que ela faria ali. Mas, quando estavam prontos para irem cada um pro seu lado da história, de volta aos universos paralelos incomunicáveis, como há alguns minutos atrás naquele bar, Paulo arriscou:
-- Escuta, Clara, e se eu precisar de ajuda com o resto das palavras-cruzadas, tem algum telefone onde eu possa te encontrar?
E ela entrou no prédio e ele entrou na história.
*******
Algum leitor atencioso poderá dizer que a saída do papel acidentalmente deixado para trás por um personagem e resgatado por outro, já foi usada antes em outro conto meu. Daí, eu poderia alegar a velha cafajestada "nada se cria...", mas vou dar a cara pra bater porque foi irresistível! Caro leitor, essa saída me pareceu tão alegórica, tão perfeita, ainda mais sendo o caderno de palavras-cruzadas no dia em que as primeiras palavras foram cruzadas entre os dois personagens...
Thursday, July 17, 2003
Reality Check: o pior é que era tudo verdade
Nada, nadica de nada, era mentira, invenção da minha cabeçorra delirante por excesso de fritura e álcool. Verdade verdadeira. No duro! Sempre que você vir o título "Reality check" pode ter certeza de que é real. Quer dizer, resguardadas as diferenças no conceito de realidade dos povos. Tudo o que está em Reality Check é fato e ocorreu (redundância intencional) mas até eu mesma, tendo sido testemunha, às vezes desconfio que estejamos vivendo num sonho coletivo, uma coisa meio Raul Seixas misturada com Matrix -- sem tiroteio mas cheia de pílulas azuis, vermelhas, efervescentes, gelatinosas, ao gosto do freguês.
Engraçado que a história do Viagra (lê-se Vaiagra) foi a que provocou a maior polêmica e, repito, foi verdade! Agora, eu recebendo remédio de enxaqueca, que nem uma índia à beira do Monte Paschoal recebendo espelinho, ninguém achou maluquice, né?
Eu ouço as coisas mais apavorantes em português de gringo também. Eu morro de rir. Todo mundo quer dizer "Tudo bem". Dentre todas as palavras da língua portuguesa e todas as expressões paulistas, cariocas e tutti quanti, todos os gringos aprendem e nunca se esquecem do "tudo bem". Várias conclusões pipocam na caixola. Que coisa mais simpática dizer "alright", "everything's fine", "no problem" assim de cara em outra língua. É o espírito do brasileiro que contamina tudo. (Fico a pensar se para se virar no Brasuca só o que se precisa saber é "tchudo bem". Um amigo me disse que na França basta saber "moi aussi". Discordar de francês e em francês dá um trabalho...) Bom, o mais divertido é que nunca íamos pensar que essas duas palavras poderiam apresentar qualquer grau de dificuldade... É, mas é aí que the pig twists its tail. Esse monte de som anasalado que a gente nem lembra mais que emite, ninguém, ninguém, ninguém sabe fazer. 'Bem', lê-se beinmnmnm... tem esse sonzinho indefinido, delicioso, no final. Quem se importa se é com m ou n? Só a Tia Vilma da terceira série e por isso mesmo a gente aprendeu direitinho e tudo isso ficou grudado na nossa cabeça. Perceba: você, que está lendo meu blog, é um ser feliz só por falar português. Talvez a garota por quem você esteja apaixonado não te dê a menor bola, talvez tenham roubado teu carro, quem sabe você esteja com problemas no emprego... mas eu garanto que você é instantaneamente mais feliz que as pessoas em geral por ter nascido imerso na última flor do lácio (...inculta e bela...) e saber intuitivamente se é m ou n, b ou v, dois r ou um só, s, z ou dois s... Só a gente sabe tudo isso. No nosso idioma é óbvio, mas advinhar no idioma dos outros é fácil como um pedaço de bolo.
Até que um dia um sujeito venezuelano virou pra mim, bêbado é claro, e, tendo esperado o momento mais oportuno quando todos pararam de falar, proferiu: "O cachorro-quente do João é muito gostoso". Eu fui correndo pro banheiro senão tinha feito xixi na calça. Quando voltei o mistério pairava: nem o venezuelano sabia o que ele mesmo tinha aprendido em português! Johnny's hotdog is very tasty -- for whatever it's worth. Isso mesmo, essa cara que você está fazendo, foi a cara que todo mundo fez.
Eita ferro! Oh Iron!
E só posso terminar dizendo que o pior é que é verdade.
Nada, nadica de nada, era mentira, invenção da minha cabeçorra delirante por excesso de fritura e álcool. Verdade verdadeira. No duro! Sempre que você vir o título "Reality check" pode ter certeza de que é real. Quer dizer, resguardadas as diferenças no conceito de realidade dos povos. Tudo o que está em Reality Check é fato e ocorreu (redundância intencional) mas até eu mesma, tendo sido testemunha, às vezes desconfio que estejamos vivendo num sonho coletivo, uma coisa meio Raul Seixas misturada com Matrix -- sem tiroteio mas cheia de pílulas azuis, vermelhas, efervescentes, gelatinosas, ao gosto do freguês.
Engraçado que a história do Viagra (lê-se Vaiagra) foi a que provocou a maior polêmica e, repito, foi verdade! Agora, eu recebendo remédio de enxaqueca, que nem uma índia à beira do Monte Paschoal recebendo espelinho, ninguém achou maluquice, né?
Eu ouço as coisas mais apavorantes em português de gringo também. Eu morro de rir. Todo mundo quer dizer "Tudo bem". Dentre todas as palavras da língua portuguesa e todas as expressões paulistas, cariocas e tutti quanti, todos os gringos aprendem e nunca se esquecem do "tudo bem". Várias conclusões pipocam na caixola. Que coisa mais simpática dizer "alright", "everything's fine", "no problem" assim de cara em outra língua. É o espírito do brasileiro que contamina tudo. (Fico a pensar se para se virar no Brasuca só o que se precisa saber é "tchudo bem". Um amigo me disse que na França basta saber "moi aussi". Discordar de francês e em francês dá um trabalho...) Bom, o mais divertido é que nunca íamos pensar que essas duas palavras poderiam apresentar qualquer grau de dificuldade... É, mas é aí que the pig twists its tail. Esse monte de som anasalado que a gente nem lembra mais que emite, ninguém, ninguém, ninguém sabe fazer. 'Bem', lê-se beinmnmnm... tem esse sonzinho indefinido, delicioso, no final. Quem se importa se é com m ou n? Só a Tia Vilma da terceira série e por isso mesmo a gente aprendeu direitinho e tudo isso ficou grudado na nossa cabeça. Perceba: você, que está lendo meu blog, é um ser feliz só por falar português. Talvez a garota por quem você esteja apaixonado não te dê a menor bola, talvez tenham roubado teu carro, quem sabe você esteja com problemas no emprego... mas eu garanto que você é instantaneamente mais feliz que as pessoas em geral por ter nascido imerso na última flor do lácio (...inculta e bela...) e saber intuitivamente se é m ou n, b ou v, dois r ou um só, s, z ou dois s... Só a gente sabe tudo isso. No nosso idioma é óbvio, mas advinhar no idioma dos outros é fácil como um pedaço de bolo.
Até que um dia um sujeito venezuelano virou pra mim, bêbado é claro, e, tendo esperado o momento mais oportuno quando todos pararam de falar, proferiu: "O cachorro-quente do João é muito gostoso". Eu fui correndo pro banheiro senão tinha feito xixi na calça. Quando voltei o mistério pairava: nem o venezuelano sabia o que ele mesmo tinha aprendido em português! Johnny's hotdog is very tasty -- for whatever it's worth. Isso mesmo, essa cara que você está fazendo, foi a cara que todo mundo fez.
Eita ferro! Oh Iron!
E só posso terminar dizendo que o pior é que é verdade.
Tuesday, July 15, 2003
Mundos paralelos: esperança e inércia.
Cansada de brigar com o vento que insistia em folhear seu livro, e sentindo o peso dos óculos de sol sob o nariz vermelho, desistiu da leitura. E o vento parou. Era só para provocá-la, só podia ser. Deitou-se de costas e ficou curtindo a inércia. Lá do fundo ouviu telefone tocando, cachorro latindo e, por fim, um par de havaianas estalando pelo chão. O pléc-pléc cessou.
-- Dona Dora, é o seu marido, qué dizê, é o seu Agenor.
-- Oi. Hã, hã. Tá. Quantos são? Que horas? Tá. Tá bom, eu coloco a saia preta. Beijo. Tchau.
-- Ele pediu pra fazer o salmão - disse Lourdes, argumentativa.
-- Frango.
-- Mas dona Dora...
-- Faz aquele frango temperadinho mesmo, tô com salmão por aqui - apontando a garganta - , um arroz bem gostoso, umas folhas de entrada - tanto faz - liga pro mercadinho da esquina e pede pra eles entregarem
-- A senhora vai me desculpar, mas essas coisas a gente tem que pegar na mão pra escolher, apertar, ver se está maduro..
-- É pra isso que eu te contratei. Vai lá você. Ou eu tenho cara de quem sabe escolher legume?
-- Ô dona Dora, que mal lhe pergunte, mas agora, depois de...de... de ter voltado do hospital a senhora vai ficar aqui fazendo nada....
E Lourdes parou de repente. Na mesinha da piscina havia pousado um interessante inseto verde.
-- Eca, que é isso, tira isso daqui, Lourdes, pelo amor de Deus...
-- Dona Dora, é uma esperança! É sorte, bom presságio!
-- Esperança é? Dora resgatou o livro debaixo da espreguiçadeira e deu com ele em cima do bicho.
Lourdes foi resmungando pra cozinha e desamarrando o avental, o pléc-pléc dos chinelos, por sorte, abafava os desaforos. Ia passar na vendinha pra escolher os legumes do seu Agenor.
E Dora ia continuar curtindo a inércia, fazendo nada o dia todo. Sem esperança nenhuma pra atrapalhar.
*****
Dias depois, lá do escritório, no meio de um sábado mais ou menos, Agenor gritou:
-- Que porra é essa, grudada no meu livro? Ô Dora...
Dora entrou no banheiro correndo. E, lá da cozinha, Lourdes deu risada. Resmungou:
-- Era a esperança, seu Agenor.
Mas ele não ouviu.
Cansada de brigar com o vento que insistia em folhear seu livro, e sentindo o peso dos óculos de sol sob o nariz vermelho, desistiu da leitura. E o vento parou. Era só para provocá-la, só podia ser. Deitou-se de costas e ficou curtindo a inércia. Lá do fundo ouviu telefone tocando, cachorro latindo e, por fim, um par de havaianas estalando pelo chão. O pléc-pléc cessou.
-- Dona Dora, é o seu marido, qué dizê, é o seu Agenor.
-- Oi. Hã, hã. Tá. Quantos são? Que horas? Tá. Tá bom, eu coloco a saia preta. Beijo. Tchau.
-- Ele pediu pra fazer o salmão - disse Lourdes, argumentativa.
-- Frango.
-- Mas dona Dora...
-- Faz aquele frango temperadinho mesmo, tô com salmão por aqui - apontando a garganta - , um arroz bem gostoso, umas folhas de entrada - tanto faz - liga pro mercadinho da esquina e pede pra eles entregarem
-- A senhora vai me desculpar, mas essas coisas a gente tem que pegar na mão pra escolher, apertar, ver se está maduro..
-- É pra isso que eu te contratei. Vai lá você. Ou eu tenho cara de quem sabe escolher legume?
-- Ô dona Dora, que mal lhe pergunte, mas agora, depois de...de... de ter voltado do hospital a senhora vai ficar aqui fazendo nada....
E Lourdes parou de repente. Na mesinha da piscina havia pousado um interessante inseto verde.
-- Eca, que é isso, tira isso daqui, Lourdes, pelo amor de Deus...
-- Dona Dora, é uma esperança! É sorte, bom presságio!
-- Esperança é? Dora resgatou o livro debaixo da espreguiçadeira e deu com ele em cima do bicho.
Lourdes foi resmungando pra cozinha e desamarrando o avental, o pléc-pléc dos chinelos, por sorte, abafava os desaforos. Ia passar na vendinha pra escolher os legumes do seu Agenor.
E Dora ia continuar curtindo a inércia, fazendo nada o dia todo. Sem esperança nenhuma pra atrapalhar.
*****
Dias depois, lá do escritório, no meio de um sábado mais ou menos, Agenor gritou:
-- Que porra é essa, grudada no meu livro? Ô Dora...
Dora entrou no banheiro correndo. E, lá da cozinha, Lourdes deu risada. Resmungou:
-- Era a esperança, seu Agenor.
Mas ele não ouviu.
Monday, July 14, 2003
Reality Check - Primeiro mundo
Quer saber o que é primeiro mundo? É calmante na espera do dentista.
Calmante mesmo. E aquela velha história de que não há civilização abaixo do Equador? Não há civilização sem Lexotan, isso sim. Se inventaram esses produtos delirantes (ao pé da palavra) proveninentes da papoula (pra não dizer ópio, pega mal, pega mal...) pra quê sentir dor e incômodo? E o pior é que eu acho que quem se beneficia mais é o dentista. Dentista de primeiro mundo não quer paciente reclamando, levantando a mão toda vez que ele precisa chegar perto do nervo com o motorzinho.
Aqui, remédio é mais importante que amizade e que dinheiro. Precisa de carona, te levo, precisa de alguns dólares, te empresto, mas não venha pedindo calmante, anti-histamínico ou sonífero 'du bão', não! Prescription Drugs não, violão! Acompanhe a historieta: uma amiga gringa tava desconfiada que o namorado tinha outra. Encontrou um comprovante do cartão de crédito dele de lingerie que não foi presente pra ela. Algum tempo depois, encontrou umas camisinhas no necessaire que ele ia levar pra uma suposta viagem de negócios. Mas aí, a gota d'água veio no dia em que ela encontrou uma cartelinha de Viagra, já com algumas cápsulas faltando: traição mesmo não é dormir com outra, é usar Viagra com outra! Aí ela terminou tudo e pronto. Pura sem vergonhice. Eu também não ia admitir que meu marido quisesse ter uma performance melhor com a outra!!! Onde já se viu? Ir lá, dar umas bimbadinhas é uma coisa. Comprar Viagra pra comer a amante é intolerável.
Uma outra gringa se hospedou lá em casa por 1 semana. Eu fiz as vezes de cicerone e a levei pra uns lugares descolados. (Detalhe que essa foi a que me fez comprar a tanga e os bobs elétricos recheados de cera - opa! too much information!, a historia dos bobs fica pra próxima...) Bom, chegou o dia de ela ir embora e, como presente de gratidão, ela me deixou duas amostras do remédio dela pra enxaqueca!!! Vê se pode? Que coisa mais amável! Eu ainda não tomei. Pra falar a verdade, fiquei com medo. Ou ainda não tive a enxaqueca que merecesse 50% do meu estoque de drogas 'barra pesada' americanas. Quase tive. Foi da última vez que algum local me fez uma pergunta idiota sobre o Brasil. Escuta, não agüento mais!!! Só eles tem as manhas de perguntar com naturalidade se o Brasil fica mais ao sul da Costa Rica. Se Belize é uma parte do Brasil. Ah, e a melhor de todas, se tem forno de microondas no Brasil. Essa foi de autoria de uma moça, loira por sinal, sem querer generalizar, mas ela sofria daquela falta de neurônios por causa da falta de pigmento no cabelo.
Quer saber, Belize é a capital do Brasil! Microondas? Pra que serve? Costa Rica, nunca ouvi falar. Aliás, abaixo da linha do Equador, existe alguma coisa de verdade ou é só especulação do tipo "existe vida em Marte"?
Amigo leitor, nós somos ETs!!! Tá lá, no meu visto de trabalho: Legal Alien.
Ué, e tem termo mais apropriado?
Quer saber o que é primeiro mundo? É calmante na espera do dentista.
Calmante mesmo. E aquela velha história de que não há civilização abaixo do Equador? Não há civilização sem Lexotan, isso sim. Se inventaram esses produtos delirantes (ao pé da palavra) proveninentes da papoula (pra não dizer ópio, pega mal, pega mal...) pra quê sentir dor e incômodo? E o pior é que eu acho que quem se beneficia mais é o dentista. Dentista de primeiro mundo não quer paciente reclamando, levantando a mão toda vez que ele precisa chegar perto do nervo com o motorzinho.
Aqui, remédio é mais importante que amizade e que dinheiro. Precisa de carona, te levo, precisa de alguns dólares, te empresto, mas não venha pedindo calmante, anti-histamínico ou sonífero 'du bão', não! Prescription Drugs não, violão! Acompanhe a historieta: uma amiga gringa tava desconfiada que o namorado tinha outra. Encontrou um comprovante do cartão de crédito dele de lingerie que não foi presente pra ela. Algum tempo depois, encontrou umas camisinhas no necessaire que ele ia levar pra uma suposta viagem de negócios. Mas aí, a gota d'água veio no dia em que ela encontrou uma cartelinha de Viagra, já com algumas cápsulas faltando: traição mesmo não é dormir com outra, é usar Viagra com outra! Aí ela terminou tudo e pronto. Pura sem vergonhice. Eu também não ia admitir que meu marido quisesse ter uma performance melhor com a outra!!! Onde já se viu? Ir lá, dar umas bimbadinhas é uma coisa. Comprar Viagra pra comer a amante é intolerável.
Uma outra gringa se hospedou lá em casa por 1 semana. Eu fiz as vezes de cicerone e a levei pra uns lugares descolados. (Detalhe que essa foi a que me fez comprar a tanga e os bobs elétricos recheados de cera - opa! too much information!, a historia dos bobs fica pra próxima...) Bom, chegou o dia de ela ir embora e, como presente de gratidão, ela me deixou duas amostras do remédio dela pra enxaqueca!!! Vê se pode? Que coisa mais amável! Eu ainda não tomei. Pra falar a verdade, fiquei com medo. Ou ainda não tive a enxaqueca que merecesse 50% do meu estoque de drogas 'barra pesada' americanas. Quase tive. Foi da última vez que algum local me fez uma pergunta idiota sobre o Brasil. Escuta, não agüento mais!!! Só eles tem as manhas de perguntar com naturalidade se o Brasil fica mais ao sul da Costa Rica. Se Belize é uma parte do Brasil. Ah, e a melhor de todas, se tem forno de microondas no Brasil. Essa foi de autoria de uma moça, loira por sinal, sem querer generalizar, mas ela sofria daquela falta de neurônios por causa da falta de pigmento no cabelo.
Quer saber, Belize é a capital do Brasil! Microondas? Pra que serve? Costa Rica, nunca ouvi falar. Aliás, abaixo da linha do Equador, existe alguma coisa de verdade ou é só especulação do tipo "existe vida em Marte"?
Amigo leitor, nós somos ETs!!! Tá lá, no meu visto de trabalho: Legal Alien.
Ué, e tem termo mais apropriado?
Indivíduos adjacentes: Clara.
O beijo está ganho quando um respira o mesmo ar que outro expirou, to catch a breath. Clara sabia que o beijo daquela noite já estava anunciado, ganhara a aposta, era questão de tempo apenas. E que aposta era essa que Clara queria vencer? Era uma aposta enviesada consigo mesma.
Não era simplesmente beijar alguém, era quase beijar ninguém, meticulosamente escolhido pra ser desimportante, pra não fazer diferença, pra não ligar nunca mais e, no dia seguinte, era só mais um risquinho na parede da cela onde Clara se escondia do amor, da paixão. Porém, apesar de ela ganhar essa aposta quase sempre, quase sempre, mal sabia ela (privilégios de narrador onisciente) que, apostando consigo, uma parte de si sempre perdia.
Chegou em casa, cantando vitória, com perfume de homem e cheiro de cigarro. Despiu-se em frente do espelho. Adorava seu umbigo, sua barriga, admirou-se nua, se achava bonita e, quando tirou o sutiã, viu uma marca roxa. Observou. Era um apertão que manchava sua branca pele. Poderia ser um polegar, poderia ser um beijo acalorado (e, a pior dúvida: poderia ter sido fruto da aposta de hoje ou da aposta passada também). O roxo no seio era prova irrefutável de que tudo aquilo que ela estava fazendo consigo a marcava visivelmente.
Por quê, Clara? Se achava-se tão bonita, se o espelho lhe mostrava tudo aquilo que sabia ser, se sabia mesmo tudo o que era e amava-se, por que sabotar-se assim? Cada beijo insignificante era mais um pedregulho na muralha reichiana que a separava de si mesma. Que a escondia do espelho, da imagem bonita de si nua. Pouco a pouco transformava-se em algo irreconhecível, ainda sem forma, sem nome, sem jeito. Às vezes Clara queria acreditar que era fruto da maturidade, da vida adulta, que estava crescendo e o mundo era assim mesmo. Não, não era. Era conseqüência da negligência que tinha consigo: beijar alguém sem importância convertia-se em não dar a devida importância a si mesma. E, apesar de admirar-se longamente nua, diante do espelho, de usar o melhor creme nos cabelos, perfume francês, sabonete importado, ao recostar-se aquela noite odiou-se por ter se deixado marcar daquela maneira violenta, no seio, a parte mais delicada e mais feminina do corpo da mulher.
E o que poderia ter sido um lindo e longo beijo, sob a lua cheia, coroado com uma chuva morna e o céu límpido do verão, era um momento insensível, vazio e ainda repleto de agressividade e não de carinho. Ela pensava que ganhara a aposta e pronto, podia beijar qualquer um. Mas a questão era outra. Será que o que Clara queria mesmo beijar qualquer um?
O beijo está ganho quando um respira o mesmo ar que outro expirou, to catch a breath. Clara sabia que o beijo daquela noite já estava anunciado, ganhara a aposta, era questão de tempo apenas. E que aposta era essa que Clara queria vencer? Era uma aposta enviesada consigo mesma.
Não era simplesmente beijar alguém, era quase beijar ninguém, meticulosamente escolhido pra ser desimportante, pra não fazer diferença, pra não ligar nunca mais e, no dia seguinte, era só mais um risquinho na parede da cela onde Clara se escondia do amor, da paixão. Porém, apesar de ela ganhar essa aposta quase sempre, quase sempre, mal sabia ela (privilégios de narrador onisciente) que, apostando consigo, uma parte de si sempre perdia.
Chegou em casa, cantando vitória, com perfume de homem e cheiro de cigarro. Despiu-se em frente do espelho. Adorava seu umbigo, sua barriga, admirou-se nua, se achava bonita e, quando tirou o sutiã, viu uma marca roxa. Observou. Era um apertão que manchava sua branca pele. Poderia ser um polegar, poderia ser um beijo acalorado (e, a pior dúvida: poderia ter sido fruto da aposta de hoje ou da aposta passada também). O roxo no seio era prova irrefutável de que tudo aquilo que ela estava fazendo consigo a marcava visivelmente.
Por quê, Clara? Se achava-se tão bonita, se o espelho lhe mostrava tudo aquilo que sabia ser, se sabia mesmo tudo o que era e amava-se, por que sabotar-se assim? Cada beijo insignificante era mais um pedregulho na muralha reichiana que a separava de si mesma. Que a escondia do espelho, da imagem bonita de si nua. Pouco a pouco transformava-se em algo irreconhecível, ainda sem forma, sem nome, sem jeito. Às vezes Clara queria acreditar que era fruto da maturidade, da vida adulta, que estava crescendo e o mundo era assim mesmo. Não, não era. Era conseqüência da negligência que tinha consigo: beijar alguém sem importância convertia-se em não dar a devida importância a si mesma. E, apesar de admirar-se longamente nua, diante do espelho, de usar o melhor creme nos cabelos, perfume francês, sabonete importado, ao recostar-se aquela noite odiou-se por ter se deixado marcar daquela maneira violenta, no seio, a parte mais delicada e mais feminina do corpo da mulher.
E o que poderia ter sido um lindo e longo beijo, sob a lua cheia, coroado com uma chuva morna e o céu límpido do verão, era um momento insensível, vazio e ainda repleto de agressividade e não de carinho. Ela pensava que ganhara a aposta e pronto, podia beijar qualquer um. Mas a questão era outra. Será que o que Clara queria mesmo beijar qualquer um?
Tuesday, July 08, 2003
Reality Check: Crônicas
Aqui é quase tudo igual. Quase.
Dizem "Buen Día" que só com um pinguinho de boa vontade é igualzinho ao nosso "Bom Dia" com o qual se pode replicar e ser muito bem compreendido. Tem até Caipirinha! Quer dizer, malemá... é sempre uma aposta no escuro quando se ouve um garçon cubano-colombiano-venezuelano-argentino dizer que ele sabe preparar a 'melhor' Caipirina. Ou então é assim você pede Caipirinha e alguém muito lá do fundo do bar diz que não tem, mas tem Mojito. E que porra mojito tem a ver com caipirinha! Rum com hortelã - pelamordedeus...
O problema, amiga, é ter que ceder àquele cetim brilhante em cores torturantes como turquesa ou pink, à lá De Millus, da Victoria's Secret. E já que é pra entrar na onda, melhor se tiver desconto do cartão da loja, é verdade, eu cedi, preenchi um formulário e tudo mais. E aí é que entra uma diferença básica, a tanga. Cautela. Tanga é o fio dental que a gente só usa na praia ("a gente" não, cara pálida, eu nunca usei fio dental, não tenho cacife...). Aqui a mulherada veste aquilo, aquele fiozinho -- popularmente apelidado pelo Faustão e outros domenicais do Brasil de "tapa-sexo", que nome lindo! -- o dia todo. Todo dia. A mulherada tem pavor de VPL, me explicou uma gringa. Visible Panty Line. Nossa, em toda minha vida, isso nunca foi uma preocupação muito grande. Vá lá combinar o sutiã com a calcinha e que sejam de cores claras se a roupa for também, mas é só. VPL é o problema. O acetinado chocante e o elástico grosseiro que custam entre 20 e 60 dólares não é... Ai, Valisére, me socorra!
Mas, como quem não pode vencê-los, junta-se a eles, eu comprei a tanga. The Thong. E fui feliz de saia branca curtir minha tarde de domingo -- VPL Free. Uma sensação de liberdade, de coragem, de não estar usando nada -- uma coisa assim Lilian Ramos -- me encheu de alegria. Encontrei um amigo: "You look so Miami!" -- Meu Deus será que ele viu que eu estava usando minha primeira tanga? Impossível, nada se vê...
Virei fã da tanga, dos 15% de desconto do cartão Victoria's Secret e, fazer o quê, quando não tem Caipirinha, eu tomo Mojito mesmo...E agora preciso me acostumar com o jogging, porque se no futuro eu tirar minha roupa na frente de alguém, melhor fazer jus ao mito do bum-bum da mulher brasileira...
Aqui é quase tudo igual. Quase.
Dizem "Buen Día" que só com um pinguinho de boa vontade é igualzinho ao nosso "Bom Dia" com o qual se pode replicar e ser muito bem compreendido. Tem até Caipirinha! Quer dizer, malemá... é sempre uma aposta no escuro quando se ouve um garçon cubano-colombiano-venezuelano-argentino dizer que ele sabe preparar a 'melhor' Caipirina. Ou então é assim você pede Caipirinha e alguém muito lá do fundo do bar diz que não tem, mas tem Mojito. E que porra mojito tem a ver com caipirinha! Rum com hortelã - pelamordedeus...
O problema, amiga, é ter que ceder àquele cetim brilhante em cores torturantes como turquesa ou pink, à lá De Millus, da Victoria's Secret. E já que é pra entrar na onda, melhor se tiver desconto do cartão da loja, é verdade, eu cedi, preenchi um formulário e tudo mais. E aí é que entra uma diferença básica, a tanga. Cautela. Tanga é o fio dental que a gente só usa na praia ("a gente" não, cara pálida, eu nunca usei fio dental, não tenho cacife...). Aqui a mulherada veste aquilo, aquele fiozinho -- popularmente apelidado pelo Faustão e outros domenicais do Brasil de "tapa-sexo", que nome lindo! -- o dia todo. Todo dia. A mulherada tem pavor de VPL, me explicou uma gringa. Visible Panty Line. Nossa, em toda minha vida, isso nunca foi uma preocupação muito grande. Vá lá combinar o sutiã com a calcinha e que sejam de cores claras se a roupa for também, mas é só. VPL é o problema. O acetinado chocante e o elástico grosseiro que custam entre 20 e 60 dólares não é... Ai, Valisére, me socorra!
Mas, como quem não pode vencê-los, junta-se a eles, eu comprei a tanga. The Thong. E fui feliz de saia branca curtir minha tarde de domingo -- VPL Free. Uma sensação de liberdade, de coragem, de não estar usando nada -- uma coisa assim Lilian Ramos -- me encheu de alegria. Encontrei um amigo: "You look so Miami!" -- Meu Deus será que ele viu que eu estava usando minha primeira tanga? Impossível, nada se vê...
Virei fã da tanga, dos 15% de desconto do cartão Victoria's Secret e, fazer o quê, quando não tem Caipirinha, eu tomo Mojito mesmo...E agora preciso me acostumar com o jogging, porque se no futuro eu tirar minha roupa na frente de alguém, melhor fazer jus ao mito do bum-bum da mulher brasileira...
Monday, July 07, 2003
Linhas cruzadas
-- E aí? - disse Sofia com uma curiosidade capaz de resistir a toda trilha sonora de aspirador e criança chorando no fundo, do seu lado do telefonema.
-- E aí nada - respondeu Clara, lacônica - nada mesmo, ele não disse nada, simplesmente levantou da mesa, estendeu a mão, nem pra me dar um beijo... me cumprimentou e foi-se embora.
-- Virou e foi embora?
-- É. Também perdeu a chance da vida dele. Perdeu, não quero nunca mais vê-lo na minha frente.
Era mentira. E Clara revisava logo em seguida seu último comentário:
-- Será que eles sabem, Sofia?
-- Do quê?
-- Que a gente já escolheu o modelo do vestido de noiva e nome dos filhos? Que a gente assina com o sobrenome deles pra ver se combina com o nosso nome? Que a gente revive a conversa na frente do espelho e inventa 30 tiradas mais espirituosas que a gente queria ter dito ao invés dos "hã-hãs"? E, que depois de todo o mico, ainda por cima, a gente discute e conta tudo com riqueza de detalhes pras amigas? Será que eles desconfiam? Ai chega, melhor mudar de assunto...
Do outro lado da linha uma Nívea chorosa e uma Sofia impaciente...
-- E o Peixoto?
-- Tá ótimo. Se instalou completamente no meu apartamento. Sofia, agora não tem mais volta. Parece que sou eu que estou aqui de favor. Realmente não consigo entender como pude viver sem Peixoto até agora...
-- Clara Maria, só você...
-- Sofia Eugênia, vou deixar você com seus afazeres maternos... Depois falamos. Beijo.
-- Beijo e cuida bem do meu gato.
E Clara pegou Peixoto no colo, abraçou-o todinho até ele reclamar com um miado desafinado.
-- Peixoto, Peixoto... Será que eles sabem?
E o gato respondeu prontamente virando de costas e indo embora com seu passo lento e elegante. Sem nem olhar pra trás.
-- Tá vendo! Homem é tudo igual!
-- E aí? - disse Sofia com uma curiosidade capaz de resistir a toda trilha sonora de aspirador e criança chorando no fundo, do seu lado do telefonema.
-- E aí nada - respondeu Clara, lacônica - nada mesmo, ele não disse nada, simplesmente levantou da mesa, estendeu a mão, nem pra me dar um beijo... me cumprimentou e foi-se embora.
-- Virou e foi embora?
-- É. Também perdeu a chance da vida dele. Perdeu, não quero nunca mais vê-lo na minha frente.
Era mentira. E Clara revisava logo em seguida seu último comentário:
-- Será que eles sabem, Sofia?
-- Do quê?
-- Que a gente já escolheu o modelo do vestido de noiva e nome dos filhos? Que a gente assina com o sobrenome deles pra ver se combina com o nosso nome? Que a gente revive a conversa na frente do espelho e inventa 30 tiradas mais espirituosas que a gente queria ter dito ao invés dos "hã-hãs"? E, que depois de todo o mico, ainda por cima, a gente discute e conta tudo com riqueza de detalhes pras amigas? Será que eles desconfiam? Ai chega, melhor mudar de assunto...
Do outro lado da linha uma Nívea chorosa e uma Sofia impaciente...
-- E o Peixoto?
-- Tá ótimo. Se instalou completamente no meu apartamento. Sofia, agora não tem mais volta. Parece que sou eu que estou aqui de favor. Realmente não consigo entender como pude viver sem Peixoto até agora...
-- Clara Maria, só você...
-- Sofia Eugênia, vou deixar você com seus afazeres maternos... Depois falamos. Beijo.
-- Beijo e cuida bem do meu gato.
E Clara pegou Peixoto no colo, abraçou-o todinho até ele reclamar com um miado desafinado.
-- Peixoto, Peixoto... Será que eles sabem?
E o gato respondeu prontamente virando de costas e indo embora com seu passo lento e elegante. Sem nem olhar pra trás.
-- Tá vendo! Homem é tudo igual!
Wednesday, July 02, 2003
Cheguei em casa, tirei meus sapatos e, quando estava pronta para sofrer minha hipnose televisiva diária, toca o telefone. Era Amélia. E Amélia é um personagem diferente. Ela me liga e me manda escrever a história dela. Ou melhor, ela me conta, ela me diz tudo e no final, depois de meu longo silêncio obediente, escutando, eu digo "claro, escrevo". Amélia se impôs a história e eu, que não posso ser Amélia, nem viver a sua vida, a escrevo (ou sonho). Viu Amélia? Taí.
Correntes transversais
Tirou as sandálias desamarrou a toalha e correu para o mar. Jogou-se nas águas, mergulhou e já depois da arrebentação das ondas, acenou lá do fundo.
-- Tá gelada?
-- Vem logo! Vem!
Amélia, pequena, boiando no horizonte, era razão suficiente pra Laércio desfazer-se da camisa, dos óculos e enfrentar o frio do mar. Logo estava lá perto e beijavam-se como nunca. Nunca? É, nunca haviam se beijado no mar, com a boca gelada e meio salgada, na parte calma do oceano, sem dar pé, no silêncio absoluto, no final da tarde, contra o céu vermelho... era tudo sonho.
Se fosse sonho de Amélia, importante era notar a pergunta que Laércio fazia a ela sobre a temperatura da água. Ela já havia pulado de cabeça e ganhado as ondas, o oceano, e ele titubeou. Se o sonho fosse de Laércio, focaríamos na Amélia pequenina acenando lá do fundo e ele se apressando em entrar no mar a despeito de todo o resto, por um beijo que fosse. Amélia atirava-se na frente, mergulhava e chamava Laércio. Ele preocupava-se porém, mesmo sem saber a temperatura, desfazia-se das roupas e jogava-se no mar pra se juntar a Amélia.
E juntos, no final, depois da arrebentação das ondas (que é bagunça, barulho), depois de desfazer-se das roupas e tudo aquilo que atrapalhava (e que pesaria demais com a água), naquele mar tranquilo, contra aquele céu vermelho, aquele beijo calmo, gelado e salgado selava o sonho compartilhado pelos dois. E terminava aí. Ou será que começava aí?
Tirou as sandálias desamarrou a toalha e correu para o mar. Jogou-se nas águas, mergulhou e já depois da arrebentação das ondas, acenou lá do fundo.
-- Tá gelada?
-- Vem logo! Vem!
Amélia, pequena, boiando no horizonte, era razão suficiente pra Laércio desfazer-se da camisa, dos óculos e enfrentar o frio do mar. Logo estava lá perto e beijavam-se como nunca. Nunca? É, nunca haviam se beijado no mar, com a boca gelada e meio salgada, na parte calma do oceano, sem dar pé, no silêncio absoluto, no final da tarde, contra o céu vermelho... era tudo sonho.
Se fosse sonho de Amélia, importante era notar a pergunta que Laércio fazia a ela sobre a temperatura da água. Ela já havia pulado de cabeça e ganhado as ondas, o oceano, e ele titubeou. Se o sonho fosse de Laércio, focaríamos na Amélia pequenina acenando lá do fundo e ele se apressando em entrar no mar a despeito de todo o resto, por um beijo que fosse. Amélia atirava-se na frente, mergulhava e chamava Laércio. Ele preocupava-se porém, mesmo sem saber a temperatura, desfazia-se das roupas e jogava-se no mar pra se juntar a Amélia.
E juntos, no final, depois da arrebentação das ondas (que é bagunça, barulho), depois de desfazer-se das roupas e tudo aquilo que atrapalhava (e que pesaria demais com a água), naquele mar tranquilo, contra aquele céu vermelho, aquele beijo calmo, gelado e salgado selava o sonho compartilhado pelos dois. E terminava aí. Ou será que começava aí?
Tuesday, July 01, 2003
Monday, June 30, 2003
Indivíduos Adjacentes: Sofia.
Entrava no banheiro apressada. Não, não era bexiga, mas a vontade de chorar que a fazia correr lá pra dentro. Sofia sentava na tampa do vaso, curvava-se, levava as mãos a cabeça e só depois de longos soluços - silenciosos, como só ela sabia soluçar em silêncio - ia começar a tentar entender porque estava chorando. Era tudo. Era tudo a sua volta que a fazia chorar. Não que tudo fosse potencialmente triste, mas tudo a atingia de alguma forma e a única reação que ela conseguia ter diante de qualquer estímulo neste período de sua vida era o choro. Nunca trancava a porta do banheiro, porque se acontecesse alguma coisa poderia sair rapidamente (mas lá no fundo sabia que na verdade tinha medo de que acontecesse algo com ela lá dentro e se a porta estivesse trancada, demorariam mais para ouví-la e resgatá-la).
Tinha vergonha de se sentir assim. Lavava o rosto repetidas vezes com água bem fria pra não revelar os olhos inchados. Porém Sofia já intuia que seu pequeno intervalo estava prestes a terminar e ficava diante do espelho, falando consigo mesma pelos minutos restantes.
Como um ator nas coxias do teatro espera os três avisos sonoros, ela também esperava o seu sinal para sair dali. Repassando em sua mente, não o texto da peça, mas um pequeno mantra de afazeres e tarefas e tudo o que ela não podia esquecer. Quando ouviu seu sinal, inconfundível, apressou-se em sair do banheiro e desabotoou a blusa no caminho. Debruçou sobre a grade do berço e Nívea agora já se acalmava pois percebia a chegada da mãe. Colocou-a perto do coração, sentou-se perto da janela para amamentar. O papel de mãe era para Sofia uma coisa surpreendente: a solidão de uma no banheiro era interrompida pela solidão da outra no quarto (e a fome da mamada da tarde ou uma fralda suja) e logo sabiam que precisavam estar juntas de novo para que tudo se resolvesse, a dor acabasse, a fome passasse, a solidão sumisse. Só Nívea podia tirar Sofia do banheiro com seu poder recém-nascido bem como, só Sofia podia saciar a fome e cuidar da pequena Nívea, só ela sabia, e era verdade, distingüir se o chorinho estridente era fome, dor de ouvido, cólicas ou troca de fralda.
Pensando bem, Sofia entendia como seus parâmetros haviam mudado: todo o resto, tudo o que não fosse Nívea, era mais feio e triste e só poderia ser razão pra chorar de vez em quando mesmo.
Entrava no banheiro apressada. Não, não era bexiga, mas a vontade de chorar que a fazia correr lá pra dentro. Sofia sentava na tampa do vaso, curvava-se, levava as mãos a cabeça e só depois de longos soluços - silenciosos, como só ela sabia soluçar em silêncio - ia começar a tentar entender porque estava chorando. Era tudo. Era tudo a sua volta que a fazia chorar. Não que tudo fosse potencialmente triste, mas tudo a atingia de alguma forma e a única reação que ela conseguia ter diante de qualquer estímulo neste período de sua vida era o choro. Nunca trancava a porta do banheiro, porque se acontecesse alguma coisa poderia sair rapidamente (mas lá no fundo sabia que na verdade tinha medo de que acontecesse algo com ela lá dentro e se a porta estivesse trancada, demorariam mais para ouví-la e resgatá-la).
Tinha vergonha de se sentir assim. Lavava o rosto repetidas vezes com água bem fria pra não revelar os olhos inchados. Porém Sofia já intuia que seu pequeno intervalo estava prestes a terminar e ficava diante do espelho, falando consigo mesma pelos minutos restantes.
Como um ator nas coxias do teatro espera os três avisos sonoros, ela também esperava o seu sinal para sair dali. Repassando em sua mente, não o texto da peça, mas um pequeno mantra de afazeres e tarefas e tudo o que ela não podia esquecer. Quando ouviu seu sinal, inconfundível, apressou-se em sair do banheiro e desabotoou a blusa no caminho. Debruçou sobre a grade do berço e Nívea agora já se acalmava pois percebia a chegada da mãe. Colocou-a perto do coração, sentou-se perto da janela para amamentar. O papel de mãe era para Sofia uma coisa surpreendente: a solidão de uma no banheiro era interrompida pela solidão da outra no quarto (e a fome da mamada da tarde ou uma fralda suja) e logo sabiam que precisavam estar juntas de novo para que tudo se resolvesse, a dor acabasse, a fome passasse, a solidão sumisse. Só Nívea podia tirar Sofia do banheiro com seu poder recém-nascido bem como, só Sofia podia saciar a fome e cuidar da pequena Nívea, só ela sabia, e era verdade, distingüir se o chorinho estridente era fome, dor de ouvido, cólicas ou troca de fralda.
Pensando bem, Sofia entendia como seus parâmetros haviam mudado: todo o resto, tudo o que não fosse Nívea, era mais feio e triste e só poderia ser razão pra chorar de vez em quando mesmo.
Friday, June 27, 2003
Mundos paralelos, indivíduos adjacentes - Delta de Vênus
O primeiro triângulo da história se estabelece a partir de Clara, Sofia e Dora. A base do triângulo é formada por Clara e Sofia unidas por uma reta firme que representava a compreensão total entre as duas. O terceiro vértice era Dora sozinha no alto, um ponto instável, às vezes mais distante, às vezes mais próxima.
Se Clara e Sofia haviam se aproximado por uma incrível compreensão silenciosa e mútua, o que as atraía para Dora era o oposto: incompreensão total. Dora era o contrário das duas ao mesmo tempo e, sendo assim, também era parte de cada uma delas como o negativo de uma foto ou o lado apagado da Lua. Três ângulos, três vértices distintos que formavam o mesmo polígono, três vidas que colidiram em uma mesma figura e se desdobram em muitas mais retas, tangentes, transversais...
A tentativa de suicídio de Dora era o motivo para a primeira reunião das três, num quarto excessivamente branco. Sofia, sentada na cadeira mais próxima do leito, observava as amigas. Clara na janela, alternando entre a conversa e o lado de fora. Sofia achava Clara parecida com um gato, que gosta da boa vida, mas sempre vive o conflito de jogar tudo pro alto e ganhar o mundo, a liberdade. E, por mais que não jogasse tudo pro alto, nunca seria totalmente domesticado. Dora, na cama, obviamente, amarrada ainda, pra não fazer mais nenhuma besteira contra si, abria os olhos e murmurava algo e voltava a dormir. Sofia desconfiava que era seu estratagema pra não enfrentar as amigas, a realidade, enfim a vida. Para Sofia, o problema de tudo isso, da amiga ter querido morrer, era perceber essa vontade mesma de morrer e ficava com medo de que um dia ela mesma sucumbisse a dor e intentasse contra sua própria vida também. Clara não tinha tanta compaixão e da janela procurava por todos os cantos uma justificava um pouco racional pra tudo aquilo. Não conseguia admitir uma coisa daquelas, não tinha pena de Dora, estava brava, estava com raiva, não conseguia entender nada daquilo, era como se suicídio fosse uma palavra estrangeira numa língua sobre a qual Clara não tivesse nenhum conhecimento.
Quando acordou de verdade, Dora encontrou-se sozinha, Clara e Sofia já haviam ido embora. Descansou os olhos nas margaridas perto da janela, onde antes estava Clara. E, depois de alguns segundos, sorriu ao perceber que, na falta de um vaso, as amigas haviam posto o ramalhete de flores na comadre. Seu primeiro sorriso "pós-mortis" fora em razão da brincadeira das amigas. E de leve, bem de leve, pelas flores, pelo sorriso e pelas amigas, realizava em si a vontade de viver novamente.
O primeiro triângulo da história se estabelece a partir de Clara, Sofia e Dora. A base do triângulo é formada por Clara e Sofia unidas por uma reta firme que representava a compreensão total entre as duas. O terceiro vértice era Dora sozinha no alto, um ponto instável, às vezes mais distante, às vezes mais próxima.
Se Clara e Sofia haviam se aproximado por uma incrível compreensão silenciosa e mútua, o que as atraía para Dora era o oposto: incompreensão total. Dora era o contrário das duas ao mesmo tempo e, sendo assim, também era parte de cada uma delas como o negativo de uma foto ou o lado apagado da Lua. Três ângulos, três vértices distintos que formavam o mesmo polígono, três vidas que colidiram em uma mesma figura e se desdobram em muitas mais retas, tangentes, transversais...
A tentativa de suicídio de Dora era o motivo para a primeira reunião das três, num quarto excessivamente branco. Sofia, sentada na cadeira mais próxima do leito, observava as amigas. Clara na janela, alternando entre a conversa e o lado de fora. Sofia achava Clara parecida com um gato, que gosta da boa vida, mas sempre vive o conflito de jogar tudo pro alto e ganhar o mundo, a liberdade. E, por mais que não jogasse tudo pro alto, nunca seria totalmente domesticado. Dora, na cama, obviamente, amarrada ainda, pra não fazer mais nenhuma besteira contra si, abria os olhos e murmurava algo e voltava a dormir. Sofia desconfiava que era seu estratagema pra não enfrentar as amigas, a realidade, enfim a vida. Para Sofia, o problema de tudo isso, da amiga ter querido morrer, era perceber essa vontade mesma de morrer e ficava com medo de que um dia ela mesma sucumbisse a dor e intentasse contra sua própria vida também. Clara não tinha tanta compaixão e da janela procurava por todos os cantos uma justificava um pouco racional pra tudo aquilo. Não conseguia admitir uma coisa daquelas, não tinha pena de Dora, estava brava, estava com raiva, não conseguia entender nada daquilo, era como se suicídio fosse uma palavra estrangeira numa língua sobre a qual Clara não tivesse nenhum conhecimento.
Quando acordou de verdade, Dora encontrou-se sozinha, Clara e Sofia já haviam ido embora. Descansou os olhos nas margaridas perto da janela, onde antes estava Clara. E, depois de alguns segundos, sorriu ao perceber que, na falta de um vaso, as amigas haviam posto o ramalhete de flores na comadre. Seu primeiro sorriso "pós-mortis" fora em razão da brincadeira das amigas. E de leve, bem de leve, pelas flores, pelo sorriso e pelas amigas, realizava em si a vontade de viver novamente.
Thursday, June 26, 2003
Tua palavra
Sonhei que estava lançando um livro e via você passar pela vitrine da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Você ficava surpreso e folheava meu livro com cara de "eu achei que iam me publicar antes de você". E com toda arrogância do mundo me estendia uma mão e dizia "Lembra de mim?".
(E eu lembrava de cada palavra tua neste interlúdio onírico, tudo parava e eu olhava pra trás e via quilômetros de páginas escritas, imaginando tua mão direita com a caneta passando por cima de tudo, forte, decidida, assertiva, você de óculos, vista cansada, resistindo e escrevendo, escrevendo, escrevendo, e eu do tamanho de um botão caminhando nas entrelinhas...)
Pra responder no mesmo tom, apertava sua direita firme e penetrava as lentes de seus óculos com cara de "tá vendo, eu consegui".
Sem nem disfarçar seus ares de "não vou ler isso nem no banheiro" me oferecia um exemplar, puxava uma caneta do bolso, desafiando-me a autografá-lo. E, bem na hora em que ia começar a escrever uma dedicatória, me lembro que era tudo pra você, que o livro eu tinha escrito pra você, pra te provar que eu era capaz. E tudo se desfazia de repente: livraria, livros, inclusive o Conjunto Nacional, e eu voltava a ser uma mera leitora sua. Nada além de um par de olhos a mais e nos fitávamos naquele sonho, como foi na realidade, sem palavras que coubessem no silêncio cursivo, (esse talvez seja o mal de quem se lê, de quem se escreve). Nem um pingo num "i" se ouvia. E, sem querer, te revelava telepaticamente que foi logo no teu primeiro texto que, com o poder da tua vírgula meticulosa, meu coração parou e, no meio do teu aposto, resolveu cair de amores por você.
Sonhei que estava lançando um livro e via você passar pela vitrine da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Você ficava surpreso e folheava meu livro com cara de "eu achei que iam me publicar antes de você". E com toda arrogância do mundo me estendia uma mão e dizia "Lembra de mim?".
(E eu lembrava de cada palavra tua neste interlúdio onírico, tudo parava e eu olhava pra trás e via quilômetros de páginas escritas, imaginando tua mão direita com a caneta passando por cima de tudo, forte, decidida, assertiva, você de óculos, vista cansada, resistindo e escrevendo, escrevendo, escrevendo, e eu do tamanho de um botão caminhando nas entrelinhas...)
Pra responder no mesmo tom, apertava sua direita firme e penetrava as lentes de seus óculos com cara de "tá vendo, eu consegui".
Sem nem disfarçar seus ares de "não vou ler isso nem no banheiro" me oferecia um exemplar, puxava uma caneta do bolso, desafiando-me a autografá-lo. E, bem na hora em que ia começar a escrever uma dedicatória, me lembro que era tudo pra você, que o livro eu tinha escrito pra você, pra te provar que eu era capaz. E tudo se desfazia de repente: livraria, livros, inclusive o Conjunto Nacional, e eu voltava a ser uma mera leitora sua. Nada além de um par de olhos a mais e nos fitávamos naquele sonho, como foi na realidade, sem palavras que coubessem no silêncio cursivo, (esse talvez seja o mal de quem se lê, de quem se escreve). Nem um pingo num "i" se ouvia. E, sem querer, te revelava telepaticamente que foi logo no teu primeiro texto que, com o poder da tua vírgula meticulosa, meu coração parou e, no meio do teu aposto, resolveu cair de amores por você.
Wednesday, June 25, 2003
Fronteira
(...) "Os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial.
Mas não se diz sempre que o autor só pode falar de si mesmo?
(...) "Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além do meu eu).
(...)"O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo."
Milan Kundera in A insustentável leveza do ser
(...) "Os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial.
Mas não se diz sempre que o autor só pode falar de si mesmo?
(...) "Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além do meu eu).
(...)"O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo."
Milan Kundera in A insustentável leveza do ser
Con Lexotan es posible!
-- Juliana!
Saí do meu transe momentâneo e encontrei dois braços vindo de encontro a mim com um comprimidinho e um copinho d'água. Minhas mãos apressaram-se em estender-se e aceitar a oferta. No entanto, puxei o breque de mão e, antes de mesmo tocar na pequena e misteriosa pílula, perguntei:
-- O que que é isso?
Nesse exato momento todos os meus neurônios e sinapses gritavam pra eu calar a boca e mandar goela abaixo o comprimido, seja lá o que fosse, dane-se, a gente quer remedinho!
-- É um calmante.
Juro por Deus que hesitei. Mas nessa hora todos os meus nervos aclamavam por piedade, minha boca esboçava um sorriso involuntário e minhas mãos foram mais rápidas. Antes que eu pudesse refletir (refletir pra quê? pra quê? ô mulher complicada, toma o calmante e pronto!), antes de eu perguntar qual era o princípio ativo, se havia efeitos colaterais (efeito colateral de calmante? tenha santa paciência! calmante é uma pílula feita de efeitos colaterais! pra quê tanta frescura, toma logo!), a direita arremessou a pílula pra dentro da boca, a esquerda deu cobertura com a água e meu primeiro calmante começava sua jornada apaziguadora por dentro de mim. Em poucos minutos todas as minhas células regozijavam com esta calma sintética, deliciosa, quando um pensamento sabotador apareceu. Será que poderia voltar guiando pra casa?
Ah... não durou nem 30 segundos essa preocupação e de alguma maneira, sobre a qual não guardo registros, eu voltei guiando pra casa e quando percebi que estava um pouquinho mais consciente morri de dar risada.
-- Juliana!
Saí do meu transe momentâneo e encontrei dois braços vindo de encontro a mim com um comprimidinho e um copinho d'água. Minhas mãos apressaram-se em estender-se e aceitar a oferta. No entanto, puxei o breque de mão e, antes de mesmo tocar na pequena e misteriosa pílula, perguntei:
-- O que que é isso?
Nesse exato momento todos os meus neurônios e sinapses gritavam pra eu calar a boca e mandar goela abaixo o comprimido, seja lá o que fosse, dane-se, a gente quer remedinho!
-- É um calmante.
Juro por Deus que hesitei. Mas nessa hora todos os meus nervos aclamavam por piedade, minha boca esboçava um sorriso involuntário e minhas mãos foram mais rápidas. Antes que eu pudesse refletir (refletir pra quê? pra quê? ô mulher complicada, toma o calmante e pronto!), antes de eu perguntar qual era o princípio ativo, se havia efeitos colaterais (efeito colateral de calmante? tenha santa paciência! calmante é uma pílula feita de efeitos colaterais! pra quê tanta frescura, toma logo!), a direita arremessou a pílula pra dentro da boca, a esquerda deu cobertura com a água e meu primeiro calmante começava sua jornada apaziguadora por dentro de mim. Em poucos minutos todas as minhas células regozijavam com esta calma sintética, deliciosa, quando um pensamento sabotador apareceu. Será que poderia voltar guiando pra casa?
Ah... não durou nem 30 segundos essa preocupação e de alguma maneira, sobre a qual não guardo registros, eu voltei guiando pra casa e quando percebi que estava um pouquinho mais consciente morri de dar risada.
Tuesday, June 17, 2003
Indivíduos adjacentes: Dora.
Com a mala pesada atrasando seu passo apertado, atravessava o aeroporto. Enquanto o corpo avançava pelas esteiras rolantes, a mente procurava em vão uma razão pra ficar. Era Dora que, lá fundo, não queria resistir. Estava louca pra deixar barato, pra fraquejar de novo, era mais fácil, rápido e indolor.
Já estava no táxi agora, o aeroporto ficara pra trás. Recolocou tudo no armário correndo, sentou no sofá, olhou pela janela, ligou a televisão, o rádio e o liquidificador. Fez uma vitamina, rasgou a passagem. E no meio do mar de inconsciência que silenciava sua cabeça, seu estômago manifestou-se, não sabia bem a favor de quê, mas o corpo ainda queria lutar. O seu ventre pedia algo, há muito tempo. Dora, sem querer ouví-lo, e para silenciar de vez as entranhas intrometidas, tomou 50 cápsulas de não-sei-o-quê.
Quando acordou da lavagem estomacal, de infeliz tinha se feito louca: a vida, da qual havia feito pouco caso, doía por todo o seu corpo. E o pouco de autonomia que uma morta-viva poderia ter, lhe tiravam agora, amarrada na cama, com alimentação intravenosa. Sentiu nojo de si por provocar pena nos outros e até quis brigar. Foi então que o psiquiatra entrou no quarto e animou a família. Disse que ela iria ter alta logo, enquanto Dora cuspia longe o coquetel de anti-depressivos que tentavam lhe dar.
Com a mala pesada atrasando seu passo apertado, atravessava o aeroporto. Enquanto o corpo avançava pelas esteiras rolantes, a mente procurava em vão uma razão pra ficar. Era Dora que, lá fundo, não queria resistir. Estava louca pra deixar barato, pra fraquejar de novo, era mais fácil, rápido e indolor.
Já estava no táxi agora, o aeroporto ficara pra trás. Recolocou tudo no armário correndo, sentou no sofá, olhou pela janela, ligou a televisão, o rádio e o liquidificador. Fez uma vitamina, rasgou a passagem. E no meio do mar de inconsciência que silenciava sua cabeça, seu estômago manifestou-se, não sabia bem a favor de quê, mas o corpo ainda queria lutar. O seu ventre pedia algo, há muito tempo. Dora, sem querer ouví-lo, e para silenciar de vez as entranhas intrometidas, tomou 50 cápsulas de não-sei-o-quê.
Quando acordou da lavagem estomacal, de infeliz tinha se feito louca: a vida, da qual havia feito pouco caso, doía por todo o seu corpo. E o pouco de autonomia que uma morta-viva poderia ter, lhe tiravam agora, amarrada na cama, com alimentação intravenosa. Sentiu nojo de si por provocar pena nos outros e até quis brigar. Foi então que o psiquiatra entrou no quarto e animou a família. Disse que ela iria ter alta logo, enquanto Dora cuspia longe o coquetel de anti-depressivos que tentavam lhe dar.
Friday, June 13, 2003
De volta ao presente (ou Tupperware fedido)
Cheguei em casa morrendo de sede. Ao abrir a geladeira, o odor gélido porém fedido me avisava que eu tinha ficado longe de casa tempo demais.
Era um tupperware com sopa de cenora e repolho.
E, como tudo que é Passado, devia ter ficado lá, longe, preso no tempo. Deveria ter se esgotado inteiramente naquele dia longínquo em que fiz a sopa para jantar. Mas, como todo Passado que não se esgotou completamente, que sobrou quietinho no fundo da nossa gelada memória, chega uma hora em que é necessário lidar com os restos que não tivemos força, apetite ou coragem pra digerir antes.
Ninguém escapa do Tupperware da Memória. É preciso confrontar os restos temidos e o cheiro terrível daquilo que quisemos esconder, esquecer ou simplesmente guardar com intenções pouco claras.
Sempre que guardamos esses pedaços incômodos da nossa história como quem não quer nada, devemos saber que o Passado, a qualquer momento, irá se impor, com o risco de contaminar o presente também. E, se buscamos voluntariamente o Passado, temos que enfrentar o cheiro de velho e de podre que ele tem.
(Juro que eu pensei em tudo isto ao chegar de Boston, enquanto de fato lavava o tupperware fedido. Vai ver que o odor de transubstanciação da matéria me subiu a cabeça...)
Cheguei em casa morrendo de sede. Ao abrir a geladeira, o odor gélido porém fedido me avisava que eu tinha ficado longe de casa tempo demais.
Era um tupperware com sopa de cenora e repolho.
E, como tudo que é Passado, devia ter ficado lá, longe, preso no tempo. Deveria ter se esgotado inteiramente naquele dia longínquo em que fiz a sopa para jantar. Mas, como todo Passado que não se esgotou completamente, que sobrou quietinho no fundo da nossa gelada memória, chega uma hora em que é necessário lidar com os restos que não tivemos força, apetite ou coragem pra digerir antes.
Ninguém escapa do Tupperware da Memória. É preciso confrontar os restos temidos e o cheiro terrível daquilo que quisemos esconder, esquecer ou simplesmente guardar com intenções pouco claras.
Sempre que guardamos esses pedaços incômodos da nossa história como quem não quer nada, devemos saber que o Passado, a qualquer momento, irá se impor, com o risco de contaminar o presente também. E, se buscamos voluntariamente o Passado, temos que enfrentar o cheiro de velho e de podre que ele tem.
(Juro que eu pensei em tudo isto ao chegar de Boston, enquanto de fato lavava o tupperware fedido. Vai ver que o odor de transubstanciação da matéria me subiu a cabeça...)
Thursday, June 12, 2003
Indivíduos transversais
Amélia estava só, no seu canto e um belo dia engajou numa conversa sobre os anos 80 com Laércio. Morreram de rir juntos com recordações distantes do "Pogobol", do "Gênius", "Merlin" e enfim todo o rol de brinquedos produzidos naquela década emblemática.
E o apelo do passado semelhante dos dois, a identificação que um teve com o outro, fez surgir o interesse mútuo.
O passado é assim, irresistível. É culpa desse conforto universal que se sente quando se encontra em outra pessoa experiências semelhantes e coincidências e piadas e lembranças. Dá aquele gostinho de "poderíamos ter nos conhecido há tanto tempo"... E foi isso que Amélia disse num suspiro:
"Laércio, será que eu já não te vi antes, em algum momento há...sei lá, 15 anos atrás?"
Laércio entendeu tudo. E a partir dali fez o contato mais intenso, diário e escrito. Escreviam-se sempre pela necessidade imposta pela distância. Nem estavam tão distantes assim, mas os dois sabiam que esta distância era condição sinequânon daquela amizade. Pois as alianças que usavam, cada um em seu dedo anular esquerdo, tinham seu par em outra casa, em outra mesa, em outra relação. Mas não convém falar de algo que Amélia e Laércio não estavam prontos pra enfrentar. Nem sabiam se queriam enfrentar.
"Ah, Amélia...se eu tivesse te visto antes..."
Amélia estava só, no seu canto e um belo dia engajou numa conversa sobre os anos 80 com Laércio. Morreram de rir juntos com recordações distantes do "Pogobol", do "Gênius", "Merlin" e enfim todo o rol de brinquedos produzidos naquela década emblemática.
E o apelo do passado semelhante dos dois, a identificação que um teve com o outro, fez surgir o interesse mútuo.
O passado é assim, irresistível. É culpa desse conforto universal que se sente quando se encontra em outra pessoa experiências semelhantes e coincidências e piadas e lembranças. Dá aquele gostinho de "poderíamos ter nos conhecido há tanto tempo"... E foi isso que Amélia disse num suspiro:
"Laércio, será que eu já não te vi antes, em algum momento há...sei lá, 15 anos atrás?"
Laércio entendeu tudo. E a partir dali fez o contato mais intenso, diário e escrito. Escreviam-se sempre pela necessidade imposta pela distância. Nem estavam tão distantes assim, mas os dois sabiam que esta distância era condição sinequânon daquela amizade. Pois as alianças que usavam, cada um em seu dedo anular esquerdo, tinham seu par em outra casa, em outra mesa, em outra relação. Mas não convém falar de algo que Amélia e Laércio não estavam prontos pra enfrentar. Nem sabiam se queriam enfrentar.
"Ah, Amélia...se eu tivesse te visto antes..."
Wednesday, June 04, 2003
Indivíduos adjacentes: Clara e Sofia
Sofia, certa manhã, quase bateu o carro, perdida no mundo das idéias e entendeu o que era reação em cadeia. Os carros, os sonhos e puft!: a realidade. Foi procurar um psicólogo.
Chegou no consultório um dia e deu de cara com dois olhos vermelhos e um nariz inchado. E aquela pessoa soluçante pediu-lhe um lenço. Sofia sorteou o pacote de kleenex de dentro da bolsa e estendeu para a moça do outro lado da sala de espera.
-- Tem dia que é assim (glup)... Meu nome é Clara (glup).
Ver Clara chorando copiosamente naquela saleta, onde era impossível olhar para outro lado ou ignorar sua tristeza, trouxe um certo alívio a Sofia. Ela comprovava a dor que também sentia, sem nome, sem razão certa, em outra pessoa. A amizade foi instantânea depois da compaixão de uma pela outra: Clara por revelar-se inteiramente e Sofia por dividir a dor e os lenços. E foi assim.
Sofia, certa manhã, quase bateu o carro, perdida no mundo das idéias e entendeu o que era reação em cadeia. Os carros, os sonhos e puft!: a realidade. Foi procurar um psicólogo.
Chegou no consultório um dia e deu de cara com dois olhos vermelhos e um nariz inchado. E aquela pessoa soluçante pediu-lhe um lenço. Sofia sorteou o pacote de kleenex de dentro da bolsa e estendeu para a moça do outro lado da sala de espera.
-- Tem dia que é assim (glup)... Meu nome é Clara (glup).
Ver Clara chorando copiosamente naquela saleta, onde era impossível olhar para outro lado ou ignorar sua tristeza, trouxe um certo alívio a Sofia. Ela comprovava a dor que também sentia, sem nome, sem razão certa, em outra pessoa. A amizade foi instantânea depois da compaixão de uma pela outra: Clara por revelar-se inteiramente e Sofia por dividir a dor e os lenços. E foi assim.
Tuesday, June 03, 2003
Mundos paralelos, indivíduos adjacentes
- 1a parte -
Clara conheceu Antonio na noite em que tomou seu maior porre. Apaixonou-se por ele alguns minutos antes de misturar as várias taças de vinho tinto com uma batidinha maneira de aguardente. Ele, por sua vez, interessou-se por ela logo na primeira risada escrachada que ela deu e foi mantendo as risadas altas e constantes à base de drinks ao longo da noite. Dançaram, conversaram, riram mas, quando eram quase 8 da manhã, os primeiros raios de sol chegavam com dores de cabeça lancinantes anunciando o fim do porre, a sede e a despedida meio sem jeito.
E foi então que Clara, caída de amores por Antonio, passou semanas grudada no celular. Foi a ressaca mais dura da história.
Cinco semanas depois, quando a esperada ligação chegou, Clara, de pijama vendo Seinfeld, disse, prontamente:
-- Não, obrigada.
Recusou o convite e dormiu abraçada com o orgulho. E Antonio, pra não dizer que perdeu a noite, pegou mais uns 2 numeros de telefones para os quais, obviamente, não tinha intenção nenhuma de ligar.
Algum tempo depois, em áreas distintas da cidade, num sábado ensolarado que tinha tudo pra dar certo, os dois levavam "um cano" de terceiros e pensavam se isso não seria um karma recém adquirido por eles, cada qual em seu canto da história.
- 1a parte -
Clara conheceu Antonio na noite em que tomou seu maior porre. Apaixonou-se por ele alguns minutos antes de misturar as várias taças de vinho tinto com uma batidinha maneira de aguardente. Ele, por sua vez, interessou-se por ela logo na primeira risada escrachada que ela deu e foi mantendo as risadas altas e constantes à base de drinks ao longo da noite. Dançaram, conversaram, riram mas, quando eram quase 8 da manhã, os primeiros raios de sol chegavam com dores de cabeça lancinantes anunciando o fim do porre, a sede e a despedida meio sem jeito.
E foi então que Clara, caída de amores por Antonio, passou semanas grudada no celular. Foi a ressaca mais dura da história.
Cinco semanas depois, quando a esperada ligação chegou, Clara, de pijama vendo Seinfeld, disse, prontamente:
-- Não, obrigada.
Recusou o convite e dormiu abraçada com o orgulho. E Antonio, pra não dizer que perdeu a noite, pegou mais uns 2 numeros de telefones para os quais, obviamente, não tinha intenção nenhuma de ligar.
Algum tempo depois, em áreas distintas da cidade, num sábado ensolarado que tinha tudo pra dar certo, os dois levavam "um cano" de terceiros e pensavam se isso não seria um karma recém adquirido por eles, cada qual em seu canto da história.
Thursday, May 29, 2003
Tuesday, May 20, 2003
Mrs. Dalloway
Podia usar a piscina, depois não podia usar mais. O dia amanhaceu lindo e eu pulei da cama com medo de que estivesse chovendo. Suspirei aliviada e fiquei pulando de um lado pro outro porque tinha dado um mal jeito no pé esquerdo. E fui fazendo as coisinhas todas fora de ordem, limpando daqui, arrumando a mesa dali, até que o brigadeiro não ficou no ponto e não deu pra enrolar - e o que faço agora com tudo aquilo de chocolate granulado e forminhas? Tinha esquecido até de tomar banho e passei 5 minutos decidindo se ia lavar a cabeça, se daria tempo do cabelo secar, se eu ia fazer escova ou deixar secar ao natural. Lavei tudo. Foi aí que não podia mais usar a piscina, que só podia usar até as nove da noite, que não podia fazer nada e não tinha nenhum superior pra gente reclamar, porque porteiro é igual em todo lugar do mundo. Troquei de roupa em cima da hora e me concentrei pra botar meu sapato de salto mais alto e foda-se o pé machucado, agora era pra ele funcionar direito. E a porta foi se abrindo em intervalos próximos e desiguais e no meio de papel de presente, sanduíches e caipirinha, muito flash e gargalhada. E Campari, porque é vermelho e me faz lembrar do meu pai que me fez chorar na frente de todo mundo quando finalmente a ligação chegou no meu celular porcaria pré-pago. Pai, tava triste que vc ainda não tinha ligado - e soluços. E klinex. E dá-lhe bossa-nova e samba e salsa. Nunca o espaço fica pequeno, a gente aperta mais pouquinho e traz a cadeira do quarto, o banquinho da cozinha e vai repondo o salaminho, o presunto crú o queijo suiço e o requeijão que passa de mão em mão quando chega o pão-de-queijo. Quando alguém bate na porta e tenho um enfarto do miocárdio. Mentira. O sangue pára todo em alguma parte do meu corpo e eu, estátua, mostro os dentes e digo "oi". Ou "hola", ou "hi". Não lembro. Nem comi nada. Fiquei lá observando a bagunça e adorando cada segundo. Dividindo cadeira cada hora com um convidado e aproveitando uns dedinhos de prosa. Quando resolvemos transgredir as regras e viva a vista linda da piscina, o sol já tinha se posto, mas o céu é sempre um espetáculo. Olha a Lua! E a pergunta foi se eu era romântica e era tarde demais. Eu sou. Eu não. E mesmo assim gostei da resposta sincera. E mesmo assim foi uma noite linda e o céu um espetáculo e pra mim, a Lua. E o coração apertou. E o ar faltou. E o aniversário passou lindo por mim que nem lembrava quantos anos tinha.
E lembrei por fim que tinha me esquecido das flores pra enfeitar a casa. Mas a casa já estava tão alegre. E eu também.
Friday, April 25, 2003
A gente quer ser bem sucedida. Ter uma carreira, ser profissional. A gente quer ter senso de humor, entender de jazz, assistir o circuito de filmes nórdicos, ir à exposição de arte moderna experimental, fazer comentários relevantes. Enfim, ser reconhecida como culta e inteligente. A gente quer saber contar piada suja pra parecer super prafrentex e extrovertida, a gente quer fazer os outros rirem com as nossas histórias e a gente quer rir da história dos outros no momento apropriado. A gente quer sair com os amigos e dançar até cair, jantar em restaurante caro, comer e beber bem e ficar em forma sempre. A gente quer fazer Yoga, acupuntura, meditação e ler também aquele livro sobre Buda. A gente quer ser experiente mas não quer ter rugas na cara - de jeito nenhum!
A gente quer estudar, casar, ter filho, formar família, viajar, escrever um livro, plantar uma árvore, mudar o mundo...
Pra quê, se basta ele chamar a gente de "gatinha" e a gente entregar todo o ouro de uma só vez?
Tuesday, April 22, 2003
Da sessão "porque blog que é blog tem que ter letra música" e para desfazer a maldição techno do sábado, deixo vocês com "It could happen to you" -- que eu escutava ontem enquanto fazia faxina junto com o Chet Baker lá em casa.
Hide your heart from sight,
Lock your dreams at night,
It could happen to you!
Don't count stars or you might stumble,
Someone drops a sigh and down you tumble . . .
Keep an eye on spring,
Run when church bells ring,
It could happen to you!
All I did was wonder how your arms would be,
And it happened to me . . .
Hide your heart from sight,
Lock your dreams at night,
It could happen to you!
Don't count stars or you might stumble,
Someone drops a sigh and down you tumble . . .
Keep an eye on spring,
Run when church bells ring,
It could happen to you!
All I did was wonder how your arms would be,
And it happened to me . . .
Vodca com Suco de Laranja -
A pior coisa que eu disse no meio do porre pascoalino: "So you do the Yoga thing?"
A pior coisa que ouvi e que me fez recobrar alguns porcento da sobriedade: "Can I count you freckles?"
E, depois disso, com a ressaca e a boca seca, lembrei que o pior mesmo foi a música "técnico" que ficou martelando no meu ouvido. Foi por causa da música que eu bebi!
A pior coisa que eu disse no meio do porre pascoalino: "So you do the Yoga thing?"
A pior coisa que ouvi e que me fez recobrar alguns porcento da sobriedade: "Can I count you freckles?"
E, depois disso, com a ressaca e a boca seca, lembrei que o pior mesmo foi a música "técnico" que ficou martelando no meu ouvido. Foi por causa da música que eu bebi!
Saturday, April 19, 2003
Friday, April 11, 2003
Estou tentando diluir o turbilhão que se passa dentro de mim. É assim, como disse Olavo Bilac, o poeta tem que se afastar do turbilhão e, à certa distância,entendê-lo, dissecá-lo. Eu odiava Olavo Bilac porque a professora incutiu na minha cabeça que ele era um poeta menor, chato, e tudo mais. Que os parnasianos em geral não mereciam atenção e que o poeta tem que estar no meio do turbilhão sim, senhor. Sei não. Mas agora que tenho este modesto bloguinho, o turbilhão me deixa confusa e não consigo arrancar da cabeça nada que não a dor por causa da ressaca, a vívida lembrança da aguardiente que não me saí do fígado e a salsa, que me deixou com dor na batata da perna. A professora não sabia de nada. Olavo Bilac também teve ressaca, paixão e dor-de-cotovelo e descobriu o quanto este turbilhão ofusca a visão da gente e nos emburrece... Só que daí, a gente se distancia e fica com saudades. Sente falta da bagunça, da insônia, da dorzinha gostosa que empurra a pena sobre o papel. E sobre isso, a palavra final foi de Pessoa, o poeta é mesmo um fingidor.
Tuesday, April 08, 2003
Caracóis -
Será que meu perfume também ficou n'algum cangote, numa camisa que demorou a ser lavada para que seu dono pudesse se lembrar de mim? Será que minha cara serigrafou a memória de alguém e se imprimiu múltiplas vezes em sonhos, como o Andy Warhol mental que eu levo dentro de mim? E, de todos eles, quantos também perderam a fome e o sono por mim, quantos beijaram o ar, quantos seguraram o telefone e conversaram sozinhos esperando uma ligação? Quantos deles ensaiaram no espelho e tiveram todo o discurso preso na garganta na hora "H"? Quantos voltaram para casa embriagados de paixão e um sorriso incomparável no rosto pelo resto da semana ou do mês ou do dia? Quantos deles abraçaram o cachorro, a empregada, a família num rompante eufórico pensando em mim? E, de vez em quando, quantos deles dão aquela olhadela pro alto e à direita rapidamente e se perdem rastreando alguma memória, alguma história, ao som de alguma música ou ao ver alguma fotografia?
Ah, sou incorrigível e continuo sentindo perfumes, lembrando de histórias, ouvindo certas músicas, esperando certas ligações mas, mesmo que a ligação nunca chegue, que o beijo fique só na memória e que o perfume saia da gola da camisa, ainda assim, sem repostas pra nada, tudo terá valido à pena.
Será que meu perfume também ficou n'algum cangote, numa camisa que demorou a ser lavada para que seu dono pudesse se lembrar de mim? Será que minha cara serigrafou a memória de alguém e se imprimiu múltiplas vezes em sonhos, como o Andy Warhol mental que eu levo dentro de mim? E, de todos eles, quantos também perderam a fome e o sono por mim, quantos beijaram o ar, quantos seguraram o telefone e conversaram sozinhos esperando uma ligação? Quantos deles ensaiaram no espelho e tiveram todo o discurso preso na garganta na hora "H"? Quantos voltaram para casa embriagados de paixão e um sorriso incomparável no rosto pelo resto da semana ou do mês ou do dia? Quantos deles abraçaram o cachorro, a empregada, a família num rompante eufórico pensando em mim? E, de vez em quando, quantos deles dão aquela olhadela pro alto e à direita rapidamente e se perdem rastreando alguma memória, alguma história, ao som de alguma música ou ao ver alguma fotografia?
Ah, sou incorrigível e continuo sentindo perfumes, lembrando de histórias, ouvindo certas músicas, esperando certas ligações mas, mesmo que a ligação nunca chegue, que o beijo fique só na memória e que o perfume saia da gola da camisa, ainda assim, sem repostas pra nada, tudo terá valido à pena.
Monday, April 07, 2003
Café pequeno
A primeira grande decisão que tomei na vida foi de qual curso fazer na faculdade, que carreira seguiria.
(Isso se descontarmos a experiência embaraçosa, hoje cômica, de estar com meu namorado do colegial e dizer pra ele, que estava com segundas, terceiras, quintas... intenções, em alto e bom tom "Não estou preparada pra isso!", ah isso foi uma decisão corajosa e bem firme!)
Bom, queria ser atriz. Claro que, diante disso, papai me deixou tirar um ano todo, depois do terceiro colegial, para repensar minha escolha. Odiei a ECA e que fique claro que não foi por influência de meu pai que eu desisti... E, neste ano de 1994, depois de trabalhar, juntar dinheiro, mochilar pela Europa por 2 meses, voltei com tanta idéia pipocando na cabeça e, com relação a carreira, pensei em Jornalismo. Inscrevi-me na PUC, na USP, na Cásper e, dia desses apareceu no cursinho uma promotora da FAAP, o manual era de graça, porém não tinham jornalismo. Botei lá: Publicidade e Propaganda. Mandei ver nas provas, na maior seriedade. Passei na Cásper, depois, na oitava chamada da PUC e, por fim, passei na FAAP.
Não lembro como foi que isto se deu mas, um dia meu pai perguntou: --"E então, Juju, em qual delas você vai se matricular?" e, de dentro de mim, do mais profundo âmago da minha alma, respondi de repente: --"FAAP - Publicidade!", (o duodeno, nesta época, devia estar bom!).
Odiei a FAAP e também o curso de Publicidade. But that's besides the point. Essas decisões enormes amadurecem e afloram dentro de mim num passe de mágica. Agora, demoro horas pra escolher se quero batata assada ou sauté, se quero frango ou peixe, se quero Cosmopolitan ou Apple Martini? O bom é que moram nessas decisões pequenas os mais charmosos prazeres da vida. Uma vez que tudo já está decidido, porque não gastar quanto tempo quiser pra escolher o perfume certo, o sapato, a camisa vermelha ou a branca...
No fundo isso é que é importante: "Merlot ou Sauvignon, Mademoiselle?"
A primeira grande decisão que tomei na vida foi de qual curso fazer na faculdade, que carreira seguiria.
(Isso se descontarmos a experiência embaraçosa, hoje cômica, de estar com meu namorado do colegial e dizer pra ele, que estava com segundas, terceiras, quintas... intenções, em alto e bom tom "Não estou preparada pra isso!", ah isso foi uma decisão corajosa e bem firme!)
Bom, queria ser atriz. Claro que, diante disso, papai me deixou tirar um ano todo, depois do terceiro colegial, para repensar minha escolha. Odiei a ECA e que fique claro que não foi por influência de meu pai que eu desisti... E, neste ano de 1994, depois de trabalhar, juntar dinheiro, mochilar pela Europa por 2 meses, voltei com tanta idéia pipocando na cabeça e, com relação a carreira, pensei em Jornalismo. Inscrevi-me na PUC, na USP, na Cásper e, dia desses apareceu no cursinho uma promotora da FAAP, o manual era de graça, porém não tinham jornalismo. Botei lá: Publicidade e Propaganda. Mandei ver nas provas, na maior seriedade. Passei na Cásper, depois, na oitava chamada da PUC e, por fim, passei na FAAP.
Não lembro como foi que isto se deu mas, um dia meu pai perguntou: --"E então, Juju, em qual delas você vai se matricular?" e, de dentro de mim, do mais profundo âmago da minha alma, respondi de repente: --"FAAP - Publicidade!", (o duodeno, nesta época, devia estar bom!).
Odiei a FAAP e também o curso de Publicidade. But that's besides the point. Essas decisões enormes amadurecem e afloram dentro de mim num passe de mágica. Agora, demoro horas pra escolher se quero batata assada ou sauté, se quero frango ou peixe, se quero Cosmopolitan ou Apple Martini? O bom é que moram nessas decisões pequenas os mais charmosos prazeres da vida. Uma vez que tudo já está decidido, porque não gastar quanto tempo quiser pra escolher o perfume certo, o sapato, a camisa vermelha ou a branca...
No fundo isso é que é importante: "Merlot ou Sauvignon, Mademoiselle?"
Sunday, April 06, 2003
"Ah, só eu sei..."
De repente um vazio no alto estômago. Se tivesse uma empadinha... Mas não é fome. Não é azia. Não é nada físico. É metafísico. É uma falta daquilo que a gente não sabe o que é nem nunca teve. É saudades de alguém que a gente nem conhece ainda. Solidão. Este contraste me assusta... tanta gente no mundo, tanto espaço, tanto mar, tanto azul e eu.
De repente um vazio no alto estômago. Se tivesse uma empadinha... Mas não é fome. Não é azia. Não é nada físico. É metafísico. É uma falta daquilo que a gente não sabe o que é nem nunca teve. É saudades de alguém que a gente nem conhece ainda. Solidão. Este contraste me assusta... tanta gente no mundo, tanto espaço, tanto mar, tanto azul e eu.
Tuesday, April 01, 2003
O bilhete ideal
Eu botei um bilhete no parabrisa do seu carro. No bilhete tinha o meu telefone, tinha alguma frase espirituosa, como é do meu feitio, e tinha escrito lá que era pra você ligar pra mim antes de viajar. Eu botei este bilhete no parabrisa do seu carro quando o vi na garagem do prédio de surpresa -- não sabia que você estava lá. E foi assim que me ocorreu a idéia brilhante. Tão brilhante que eu não botei bilhete algum, mas a cena estava toda ensaiada, o bilhete escrito, e eu até já sabia o que ia dizer quando você me ligasse. Será? Fiquei com medo, vergonha, crise de bobeira e não botei o bilhete e você não me ligou antes de viajar porque não tinha meu celular e não saímos e não beijamos e a história morreu ali.
Droga de filosofia essa que sempre acerta a gente e acaba por partir nosso coração... Ah, o mundo das idéias, Platão tinha razão, é mesmo fascinante e nos abduz.
Cuidado pro resto da vida: bilhete mental não chega ao destinatário.
Como dizia Vinicius de Morais "Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém".
Eu botei um bilhete no parabrisa do seu carro. No bilhete tinha o meu telefone, tinha alguma frase espirituosa, como é do meu feitio, e tinha escrito lá que era pra você ligar pra mim antes de viajar. Eu botei este bilhete no parabrisa do seu carro quando o vi na garagem do prédio de surpresa -- não sabia que você estava lá. E foi assim que me ocorreu a idéia brilhante. Tão brilhante que eu não botei bilhete algum, mas a cena estava toda ensaiada, o bilhete escrito, e eu até já sabia o que ia dizer quando você me ligasse. Será? Fiquei com medo, vergonha, crise de bobeira e não botei o bilhete e você não me ligou antes de viajar porque não tinha meu celular e não saímos e não beijamos e a história morreu ali.
Droga de filosofia essa que sempre acerta a gente e acaba por partir nosso coração... Ah, o mundo das idéias, Platão tinha razão, é mesmo fascinante e nos abduz.
Cuidado pro resto da vida: bilhete mental não chega ao destinatário.
Como dizia Vinicius de Morais "Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém".
The opposite of sex.
Dormir abraçadinho em forma de conchinha numa noite fria. Acordar com preguiça, e num longo estirar de braços, enlaçar o outro pra dizer bom-dia. Andar de mãos dadas, sentar de mãos dadas, dar as mãos por cima da mesa num restaurante, sem declaração de amor -- e tudo já era uma declaração de amor.
Quando será que *aquele ônibus* vai passar pra mim? E, quando subir nele, saberei reconhecer o grande amor?
Ser romântico é assim: procurar a vida toda por alguma coisa que a gente não sabe como é, com o que se parece ou que cara tem. Procurar o amor é uma busca louca por algo que sequer conhecemos...
Mas acreditar que ele existe, muitas vezes, já basta. Porque, apesar de todo horror, de tanto coração partido, desilusão, príncipe virando sapo, a gente é cabeça-dura, duríssima, e continua acreditando nele, no amor que a gente ainda não encontrou.
Dormir abraçadinho em forma de conchinha numa noite fria. Acordar com preguiça, e num longo estirar de braços, enlaçar o outro pra dizer bom-dia. Andar de mãos dadas, sentar de mãos dadas, dar as mãos por cima da mesa num restaurante, sem declaração de amor -- e tudo já era uma declaração de amor.
Quando será que *aquele ônibus* vai passar pra mim? E, quando subir nele, saberei reconhecer o grande amor?
Ser romântico é assim: procurar a vida toda por alguma coisa que a gente não sabe como é, com o que se parece ou que cara tem. Procurar o amor é uma busca louca por algo que sequer conhecemos...
Mas acreditar que ele existe, muitas vezes, já basta. Porque, apesar de todo horror, de tanto coração partido, desilusão, príncipe virando sapo, a gente é cabeça-dura, duríssima, e continua acreditando nele, no amor que a gente ainda não encontrou.
Cupido-Cobrador
Era um dia normal. Ela acenou e subiu no mesmo ônibus de todos os dias, após ter comprado algumas ameixas, a fruta mais fresca do dia, na quitanda que ficava no caminho entre a loja e o ponto.
Era um dia infernal. O carro quebrou no meio da rua. Sem dinheiro para um táxi, que seria mesmo uma extravagância, ele subiu no primeiro ônibus que apareceu.
Ela, a constância: o mesmo ônibus, o mesmo horário, as frutas para a longa viagem de volta pra casa.
Ele, o acaso, pura obra do destino e seu sopro certeiro: carro quebrado, dia agitado e o primeiro ônibus que passou no ponto foi o que ele pegou.
Poderia ter pego outro. Ela poderia ter perdido aquele se tivesse querido escolher outra fruta, bater papo com o quitandeiro, parar pra fazer xixi antes de embarcar. Ele poderia ter pego o táxi, se não quisesse fazer economia. Eles poderiam certamente nunca ter se encontrado na vida, porque o que é um ônibus perto de toda a cidade de São Paulo e seus milhões de habitantes? Era realmente muito mais fácil não terem se encontrado nunca. Mas ela passou naquele ônibus e ele escolheu subir nele também.
Ele a acompanhou até em casa, desceu no mesmo ponto, com seu consentimento, é claro, e andou com ela até o portão. Perdeu a hora na oficina e a aula na faculdade. Ela, meio envergonhada, despediu-se, entrou em casa e depois, pela fresta da janela, ficou espiando ele ir embora.
No dia seguinte, ele consertou o carro e, com uma cesta de frutas frescas, voltou à casa dela.
Será que ela soube reconhecer nele o futuro marido em algum momento entre o ônibus e os quarteirões a pé?
Será que algum dos dois sabia que anos depois se casariam, teriam filhos, casa, cachorro e tudo mais?
E eu, que faço as vezes de narradora onisciente, sou a cria desse amor à primeira vista que incutiu dentro de mim, desde o momento mais primordial da fecundação, a crença no amor verdadeiro.
Era um dia normal. Ela acenou e subiu no mesmo ônibus de todos os dias, após ter comprado algumas ameixas, a fruta mais fresca do dia, na quitanda que ficava no caminho entre a loja e o ponto.
Era um dia infernal. O carro quebrou no meio da rua. Sem dinheiro para um táxi, que seria mesmo uma extravagância, ele subiu no primeiro ônibus que apareceu.
Ela, a constância: o mesmo ônibus, o mesmo horário, as frutas para a longa viagem de volta pra casa.
Ele, o acaso, pura obra do destino e seu sopro certeiro: carro quebrado, dia agitado e o primeiro ônibus que passou no ponto foi o que ele pegou.
Poderia ter pego outro. Ela poderia ter perdido aquele se tivesse querido escolher outra fruta, bater papo com o quitandeiro, parar pra fazer xixi antes de embarcar. Ele poderia ter pego o táxi, se não quisesse fazer economia. Eles poderiam certamente nunca ter se encontrado na vida, porque o que é um ônibus perto de toda a cidade de São Paulo e seus milhões de habitantes? Era realmente muito mais fácil não terem se encontrado nunca. Mas ela passou naquele ônibus e ele escolheu subir nele também.
Ele a acompanhou até em casa, desceu no mesmo ponto, com seu consentimento, é claro, e andou com ela até o portão. Perdeu a hora na oficina e a aula na faculdade. Ela, meio envergonhada, despediu-se, entrou em casa e depois, pela fresta da janela, ficou espiando ele ir embora.
No dia seguinte, ele consertou o carro e, com uma cesta de frutas frescas, voltou à casa dela.
Será que ela soube reconhecer nele o futuro marido em algum momento entre o ônibus e os quarteirões a pé?
Será que algum dos dois sabia que anos depois se casariam, teriam filhos, casa, cachorro e tudo mais?
E eu, que faço as vezes de narradora onisciente, sou a cria desse amor à primeira vista que incutiu dentro de mim, desde o momento mais primordial da fecundação, a crença no amor verdadeiro.
Thursday, March 27, 2003
Duodeno -- esse desconhecido - parte 2
Tenho que começar dizendo que isto foi uma contribuição de inestimável valor sentimental e educacional. Obrigada, Misterioso Colaborador.
O que é o Duodeno?
"...É uma das três regiões em que é dividido o intestino delgado. Considera-se como duodeno a região inicial do intestino delgado, a partir do esfíncter pilórico, que é o espessamento da musculatura lisa e controla a passagem do alimento do estômago para o resto do trato digestivo."
Tá explicada a relação com decisões: é o Duodeno quem decide quem passa para a próxima fase da digestão, do estômago para o intestino!
A digestão é como se fosse um pequeno Reality Show dentro da nossa barriga. Imagina, lá no estômago, as comidas chegando todas mastigadas que nem as estrelas em decadência do Casa dos Artistas! Daí vão passando por provas de dissociação de moléculas, quebra de fibras e proteínas e as que terminam primeiro se apresentam para o Duodeno que é o jurado que tem o voto de Minerva do sistema digestivo. Mas, no final desse Reality Show Digestivo, todos os participantes devem ser eliminados!
Mais Duodeno aqui -- ou quaisquer outras dúvidas e curiosidades -- é um link porreta de uma enciclopédia virtual que eu recebi de um leitor-amigo-trader-contador de piada e mais importante de todos ótima companhia de copo em bar.
Tenho que começar dizendo que isto foi uma contribuição de inestimável valor sentimental e educacional. Obrigada, Misterioso Colaborador.
O que é o Duodeno?
"...É uma das três regiões em que é dividido o intestino delgado. Considera-se como duodeno a região inicial do intestino delgado, a partir do esfíncter pilórico, que é o espessamento da musculatura lisa e controla a passagem do alimento do estômago para o resto do trato digestivo."
Tá explicada a relação com decisões: é o Duodeno quem decide quem passa para a próxima fase da digestão, do estômago para o intestino!
A digestão é como se fosse um pequeno Reality Show dentro da nossa barriga. Imagina, lá no estômago, as comidas chegando todas mastigadas que nem as estrelas em decadência do Casa dos Artistas! Daí vão passando por provas de dissociação de moléculas, quebra de fibras e proteínas e as que terminam primeiro se apresentam para o Duodeno que é o jurado que tem o voto de Minerva do sistema digestivo. Mas, no final desse Reality Show Digestivo, todos os participantes devem ser eliminados!
Mais Duodeno aqui -- ou quaisquer outras dúvidas e curiosidades -- é um link porreta de uma enciclopédia virtual que eu recebi de um leitor-amigo-trader-contador de piada e mais importante de todos ótima companhia de copo em bar.
Monday, March 24, 2003
Duodeno -- esse desconhecido.
Outro dia, a famosa dançarina-blogger-comentarista de futebol-amiga-esposa e match maker nas horas vagas escreveu sobre a minha dica do duodeno aqui.
Há mais ou menos 1 ano, eu, com o pescoço duro, duro, comento com uma amiga do Aikido (eu sou faixa amarela, não é grandes coisas, mas já alguma coisa) que meu pescoço dói e sempre é assim, qualquer coisa é o pescoço que sente tudo. Ela, psiquiatra-acupunturista-aikidoista e esposa nas horas vagas, indaga:
-- É mais do lado esquerdo ou do direito?
-- Ah, tipo assim, é dos dois lados -- digo eu.
-- Você tem dificuldade pra tomar decisões?
-- Xii, tenho, tenho... levo uma vida pra escolher prato em restaurante, o que vestir de manhã e que perfume vou passar.
-- Ah, só pode ser o Duodeno!
Um ano depois, ou seja agora, Duodeno tinindo! Eita ferro, quanta decisão difícil andei tomando e assim, ó, rápida e decidida! Mas resta saber se foi o duodeno que melhorou sozinho ou se foram as decisões que fizeram ele funcionar melhor (Biscoito Tostines é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?).
E dor no pescoço nunca mais!
Ah, em tempo, que porra é o duodeno? o que ele faz? onde se localiza?
(Só não adianta perguntar porquê cargas d'água tem a ver com decisões. Essas coisas de medicina Chinesa não têm explicações compreensíveis aos ocidentais.)
Outro dia, a famosa dançarina-blogger-comentarista de futebol-amiga-esposa e match maker nas horas vagas escreveu sobre a minha dica do duodeno aqui.
Há mais ou menos 1 ano, eu, com o pescoço duro, duro, comento com uma amiga do Aikido (eu sou faixa amarela, não é grandes coisas, mas já alguma coisa) que meu pescoço dói e sempre é assim, qualquer coisa é o pescoço que sente tudo. Ela, psiquiatra-acupunturista-aikidoista e esposa nas horas vagas, indaga:
-- É mais do lado esquerdo ou do direito?
-- Ah, tipo assim, é dos dois lados -- digo eu.
-- Você tem dificuldade pra tomar decisões?
-- Xii, tenho, tenho... levo uma vida pra escolher prato em restaurante, o que vestir de manhã e que perfume vou passar.
-- Ah, só pode ser o Duodeno!
Um ano depois, ou seja agora, Duodeno tinindo! Eita ferro, quanta decisão difícil andei tomando e assim, ó, rápida e decidida! Mas resta saber se foi o duodeno que melhorou sozinho ou se foram as decisões que fizeram ele funcionar melhor (Biscoito Tostines é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?).
E dor no pescoço nunca mais!
Ah, em tempo, que porra é o duodeno? o que ele faz? onde se localiza?
(Só não adianta perguntar porquê cargas d'água tem a ver com decisões. Essas coisas de medicina Chinesa não têm explicações compreensíveis aos ocidentais.)
Um minuto. Respira fundo, Juliana, engole o choro. Vale à pena o estomago roncando do almoço que não virá hoje, não há tempo, a dor de dente, a cólica e o nervoso. Vale à pena. Você é jovem e tem stamina, tem mais é que agüentar. Conte até a dez em alemão -- truque antigo... se não funcionar, ainda sabe contar até 100 em alemão... E, se ainda não funcionar, tem que lembrar que tudo vale à pena -- como disse aquele poeta...
Saturday, March 22, 2003
A menina que bebeu o mar.
Tomando um iogurte light, assistindo o mar da janela, pintava.
Confundiu a colher e o iogurte com o pincel e a tinta. Espalhou o iogurte light por todo o papel e, quando se deu conta da burrada, não teve dúvida: bebeu toda tinta.
Era um quadro sobre o mar que silencioso passava por fora de sua janela. Agora, a tinta azul toda sendo digerida, era o mar passando dentro de si também. Queria tanto pintar o mar e entender o tom do seu azul, às vezes verde, que bebeu o mar todo de sua pintura no café da manhã.
Sentiu-se bem o resto do dia, fresca por dentro, com todo o azul agradável misturando-se dentro dela. De repente, deu dois passos à frente e recuou - eram as ondas em formação.
Diante disso tudo resolveu voltar ao quadro, pintou, pintou, pintou, tomando o cuidado de afastar comidas e bebidas da mesa onde pintava.
Fez xixi azul-esverdeado por vários dias mas, também, desvendou a cor perfeita do mar. E os quadros todos ficaram lindos.
Tomando um iogurte light, assistindo o mar da janela, pintava.
Confundiu a colher e o iogurte com o pincel e a tinta. Espalhou o iogurte light por todo o papel e, quando se deu conta da burrada, não teve dúvida: bebeu toda tinta.
Era um quadro sobre o mar que silencioso passava por fora de sua janela. Agora, a tinta azul toda sendo digerida, era o mar passando dentro de si também. Queria tanto pintar o mar e entender o tom do seu azul, às vezes verde, que bebeu o mar todo de sua pintura no café da manhã.
Sentiu-se bem o resto do dia, fresca por dentro, com todo o azul agradável misturando-se dentro dela. De repente, deu dois passos à frente e recuou - eram as ondas em formação.
Diante disso tudo resolveu voltar ao quadro, pintou, pintou, pintou, tomando o cuidado de afastar comidas e bebidas da mesa onde pintava.
Fez xixi azul-esverdeado por vários dias mas, também, desvendou a cor perfeita do mar. E os quadros todos ficaram lindos.
Sunday, March 16, 2003
Vento e Água
Sempre gostei dos dias chuvosos. Confesso que era por pena deles, de todo mundo abrir a janela, e ao menor sinal de chuva ou tempo nublado exclamar "Que dia horrível!". Adotei os dias chuvosos e nublados para mim.
Ontem, quando acordei, fazia sol. Pensei "Que dia lindo". E logo em protesto, aposto, em menos de 15 minutos, uma nuvem gigante instalou-se em frente de casa, bem na frente da minha janela e começou a desfazer o dia. Escureceu, esfriou e choveu. Mas o que o dia e o tempo não sabem é que é um espetáculo ver a chuva acontecendo sobre o mar. O céu e o mar parecem estar se misturando, o horizonte perde a linearidade e fica difuso, como uma linha insinuada, que a gente acredita que está ali.
Ao final da tarde, o sol conseguiu brilhar por uma brechinha de nuvem antes de se pôr. Então, misturaram-se o sol, o céu, a água e o vento. E apareceu um arco-íris. E eu pensei comigo mesma que dia mais lindo do que esse eu nunca, nunca tinha visto em minha vida.
*Feng Shui significa em chinês vento e água e é uma ciência que ensina a preencher sua casa com graça e harmonia. Vento e Água cabem em qualquer lugar, podem tomar qualquer forma ou cor. Nosso planeta é todo feito e preenchido deles: vento e água. Quando um dia revela todo esse segredo milenar, essa capacidade de mudança, de cor, de mistura, de vida, a gente tem que admitir que dia chuvoso é lindo também. É perfeito.
Sempre gostei dos dias chuvosos. Confesso que era por pena deles, de todo mundo abrir a janela, e ao menor sinal de chuva ou tempo nublado exclamar "Que dia horrível!". Adotei os dias chuvosos e nublados para mim.
Ontem, quando acordei, fazia sol. Pensei "Que dia lindo". E logo em protesto, aposto, em menos de 15 minutos, uma nuvem gigante instalou-se em frente de casa, bem na frente da minha janela e começou a desfazer o dia. Escureceu, esfriou e choveu. Mas o que o dia e o tempo não sabem é que é um espetáculo ver a chuva acontecendo sobre o mar. O céu e o mar parecem estar se misturando, o horizonte perde a linearidade e fica difuso, como uma linha insinuada, que a gente acredita que está ali.
Ao final da tarde, o sol conseguiu brilhar por uma brechinha de nuvem antes de se pôr. Então, misturaram-se o sol, o céu, a água e o vento. E apareceu um arco-íris. E eu pensei comigo mesma que dia mais lindo do que esse eu nunca, nunca tinha visto em minha vida.
*Feng Shui significa em chinês vento e água e é uma ciência que ensina a preencher sua casa com graça e harmonia. Vento e Água cabem em qualquer lugar, podem tomar qualquer forma ou cor. Nosso planeta é todo feito e preenchido deles: vento e água. Quando um dia revela todo esse segredo milenar, essa capacidade de mudança, de cor, de mistura, de vida, a gente tem que admitir que dia chuvoso é lindo também. É perfeito.
Wednesday, March 12, 2003
Me recuso a fazer café. Se não for na minha casa e na minha cafeteirinha italiana, não faço. E todo dia ouço, lá da copa do escritório, alguém reclamando que ninguém faz café... Mas a vida é assim: aponta sozinha de vez em quando a responsabilidade de cada um. Esta moça que reclama todo dia, é a pessoa-do-café. Não é incrível que ela é quem sempre resolve tomar café quando o café acabou? É o destino usando sua mão de ferro e fazendo-a ir lá na copa preparar mais daquele líquido translúcido e fraco como um sopro de um tuberculoso (aqui são os EUA, estou falando do café americano).
Eu, por exemplo, sou a pessoa-do-papel. É verdade. Desde que consegui meu primeiro estágio, as impressoras de todo mundo encanaram comigo e sempre, mas sempre mesmo, que eu preciso imprimir uma coisa qualquer o papel acabou. Ou seja, nos útlimos 6 anos tenho desenvolvido paralelamente a carreira de pessoa-do-papel. Lá pelo terceiro ano desse karma, parei de reclamar, diferentemente da moça-do-café. Aceitei minha responsabilidade e boto mais papel ali nas bandeijinhas com orgulho.
Em casa, porém, eu era a pessoa-do-papel-higiênico. Era sempre comigo que o rolo acabava... no entanto, essa pessoa tem que ser assistida e meu irmão era o assistente-de-papel-higiênico: Fê, traz papel!
E, além dessa árdua tarefa, ele também acumulava o título de pessoa-da-maionese. Sabe quando você prepara um sanduichão e só falta a maionese, daí você abre a geladeira, encontra o pote, abre o pote e o pote está vazio? Só com aqueles restos ressecados presos nos cantos.... Então, esse cara era o meu irmão.
Além dessas, existem outras funções importantíssimas esquecidas, overlooked eu diria, pela sociedade. Como por exemplo: pessoa-do-toner (passei raspando nessa!), pessoa-do-quadro-torto, pessoa-das-janelas-abertas-quando-começa-a-chover (que pode variar para roupas-no-varal-quando-começa-a chover), pessoa-da-garrafa-d'água-na-geladeira, pessoa-que-sempre-faz-cubos-de-gelo etc, etc, etc.
Me recuso a fazer café. Sou a pessoa-do-papel e pronto!
Eu, por exemplo, sou a pessoa-do-papel. É verdade. Desde que consegui meu primeiro estágio, as impressoras de todo mundo encanaram comigo e sempre, mas sempre mesmo, que eu preciso imprimir uma coisa qualquer o papel acabou. Ou seja, nos útlimos 6 anos tenho desenvolvido paralelamente a carreira de pessoa-do-papel. Lá pelo terceiro ano desse karma, parei de reclamar, diferentemente da moça-do-café. Aceitei minha responsabilidade e boto mais papel ali nas bandeijinhas com orgulho.
Em casa, porém, eu era a pessoa-do-papel-higiênico. Era sempre comigo que o rolo acabava... no entanto, essa pessoa tem que ser assistida e meu irmão era o assistente-de-papel-higiênico: Fê, traz papel!
E, além dessa árdua tarefa, ele também acumulava o título de pessoa-da-maionese. Sabe quando você prepara um sanduichão e só falta a maionese, daí você abre a geladeira, encontra o pote, abre o pote e o pote está vazio? Só com aqueles restos ressecados presos nos cantos.... Então, esse cara era o meu irmão.
Além dessas, existem outras funções importantíssimas esquecidas, overlooked eu diria, pela sociedade. Como por exemplo: pessoa-do-toner (passei raspando nessa!), pessoa-do-quadro-torto, pessoa-das-janelas-abertas-quando-começa-a-chover (que pode variar para roupas-no-varal-quando-começa-a chover), pessoa-da-garrafa-d'água-na-geladeira, pessoa-que-sempre-faz-cubos-de-gelo etc, etc, etc.
Me recuso a fazer café. Sou a pessoa-do-papel e pronto!
Friday, March 07, 2003
O inglês é uma língua onde as pessoas não mandam beijo. Não pode pôr "kisses" no final do email. Não importa pra quem é o email. Não pode. Tem que pôr Regards. E que merda são "Regards"?
Ou então, se for carta pessoal e pra alguém muito chegado, você coloca lá no final "Love". Só que não siginifica "love" mesmo. Aliás, love aqui não significa nada do que a gente entende como amor. Credo, não agüento chegar em festa e ver todo mundo se estendendo as mãos e afastando os corpos, parece até um monte de bonecos de olinda. E eu, toda latina, pronta pra dar umas ombradas nos americanos e dois beijos no rosto, bem no estilo "saravá-meu-pai". Queria ver essa gente em ônibus lotado. Andando no centro, na Santa Efigênia ou na José Paulino.
Com licença, mas eu não tenho "regards" por ninguém. é impossível brasileiro sentir regards. Da mesma forma que o americano tem uma dificuldade com o "love".
E porquê essa história de regular beijo e abraço? Não pode dar quando se cumprimenta, não pode dar quando se despede e se mandar por email pega mal.
Uma língua em que se beija menos, é uma língua triste, no mínimo, certo?
Ou então, se for carta pessoal e pra alguém muito chegado, você coloca lá no final "Love". Só que não siginifica "love" mesmo. Aliás, love aqui não significa nada do que a gente entende como amor. Credo, não agüento chegar em festa e ver todo mundo se estendendo as mãos e afastando os corpos, parece até um monte de bonecos de olinda. E eu, toda latina, pronta pra dar umas ombradas nos americanos e dois beijos no rosto, bem no estilo "saravá-meu-pai". Queria ver essa gente em ônibus lotado. Andando no centro, na Santa Efigênia ou na José Paulino.
Com licença, mas eu não tenho "regards" por ninguém. é impossível brasileiro sentir regards. Da mesma forma que o americano tem uma dificuldade com o "love".
E porquê essa história de regular beijo e abraço? Não pode dar quando se cumprimenta, não pode dar quando se despede e se mandar por email pega mal.
Uma língua em que se beija menos, é uma língua triste, no mínimo, certo?
Wednesday, March 05, 2003
Enema for the Soul
My newest friend and room mate gets set up with this brazilian doctor she has never seen before (the very american way...). His sister though looks gorgeous and believing in that family's good genes she accepts the challenge and is having a blast up to the moment she learns what kind of a doctor he is, then I began to have a blast myself! He is a colon and rectal surgeon. "What are you going to talk about during dinner? His amazing techniques and professional expertise? I wonder if he also carries his professional interests into his personal life..." and so on. We actually laughed big time over all this stupid comments and behaviour none of us believed he could possibly have. She even suggested he would be able to perform an Enema for the Soul on her - to get all the shit out of her, spiritually speaking of course.
The morning after - as a mediunic premonition our worst fears had become reality. This doctor went on and on about his work, while performing a surgery on his pizza at Piola. Even used gestures and medical denominations.
Some words should never be used at the table, let alone on a first date:
Small Bowel
Large Bowel
Esfincter
Just to finalize, he did not had the good looking genes from the family and, although being very involved in his work, could not perform the Enema for Soul.
Well, at least it's one less frog in our restless journey to find the Prince...
My newest friend and room mate gets set up with this brazilian doctor she has never seen before (the very american way...). His sister though looks gorgeous and believing in that family's good genes she accepts the challenge and is having a blast up to the moment she learns what kind of a doctor he is, then I began to have a blast myself! He is a colon and rectal surgeon. "What are you going to talk about during dinner? His amazing techniques and professional expertise? I wonder if he also carries his professional interests into his personal life..." and so on. We actually laughed big time over all this stupid comments and behaviour none of us believed he could possibly have. She even suggested he would be able to perform an Enema for the Soul on her - to get all the shit out of her, spiritually speaking of course.
The morning after - as a mediunic premonition our worst fears had become reality. This doctor went on and on about his work, while performing a surgery on his pizza at Piola. Even used gestures and medical denominations.
Some words should never be used at the table, let alone on a first date:
Small Bowel
Large Bowel
Esfincter
Just to finalize, he did not had the good looking genes from the family and, although being very involved in his work, could not perform the Enema for Soul.
Well, at least it's one less frog in our restless journey to find the Prince...
Tuesday, March 04, 2003
"...não me leve a mal, hoje é Carnaval..."
Ah, o carnaval, aquela época do ano em que as pessoas se juntam em clubes e salões sempre super lotados para pular e se sacudir ao ritmo de uma banda barulhenta com vocalistas gritões.
Daí, lá pras tantas, tem sempre um suadão perdigotando cerveja em cima das mocinhas soltando as maiores atrocidades em termos de cantadas mal dadas. A moça, irritada, dá na cara dele com o leque de papelão que ganhou na entrada do baile e, logo em seguida, se mete no meio do trenzinho e vai pro outro lado do salão.
Tem sempre algum chato, cheirado de lança perfume, soprando naquelas cornetas coloridas de estádio de futebol e deixando os mais próximos ensurdecidos por alguns minutos. Tem sempre muito shortinhos e saias havaianas feitas de ráfias coloridas. Tem sempre muito beijo e muita pouca-vergonha! E um montão de confete e serpentina cobrindo o chão e dentro da roupa da gente!
Tem sempre quatro dias emendados e um pedacinho da quarta-feira de cinzas pra curtir...
Ah, o Carnaval...
(Declaração de inveja de uma brasileira voluntariamente exilada no Tio Sam)
Ah, o carnaval, aquela época do ano em que as pessoas se juntam em clubes e salões sempre super lotados para pular e se sacudir ao ritmo de uma banda barulhenta com vocalistas gritões.
Daí, lá pras tantas, tem sempre um suadão perdigotando cerveja em cima das mocinhas soltando as maiores atrocidades em termos de cantadas mal dadas. A moça, irritada, dá na cara dele com o leque de papelão que ganhou na entrada do baile e, logo em seguida, se mete no meio do trenzinho e vai pro outro lado do salão.
Tem sempre algum chato, cheirado de lança perfume, soprando naquelas cornetas coloridas de estádio de futebol e deixando os mais próximos ensurdecidos por alguns minutos. Tem sempre muito shortinhos e saias havaianas feitas de ráfias coloridas. Tem sempre muito beijo e muita pouca-vergonha! E um montão de confete e serpentina cobrindo o chão e dentro da roupa da gente!
Tem sempre quatro dias emendados e um pedacinho da quarta-feira de cinzas pra curtir...
Ah, o Carnaval...
(Declaração de inveja de uma brasileira voluntariamente exilada no Tio Sam)
Monday, March 03, 2003
Tuesday, February 25, 2003
A coisa mais sacana que ouvi na festa sexta-feira:
"Yeah, teach her the hussle, teach her the hussle!"
(E um louco apareceu me tomando pelas mãos e me rodopiando como se eu fosse um iô-iô.)
A coisa mais bacana que ouvi na mesma festa sexta-feira:
"Una más, siempre! Una más - Porque no?"
(E um outro maluco me rodopiava ao som de algum rítmo latino que eu já não conseguia àquela altura diferenciar!)
"Yeah, teach her the hussle, teach her the hussle!"
(E um louco apareceu me tomando pelas mãos e me rodopiando como se eu fosse um iô-iô.)
A coisa mais bacana que ouvi na mesma festa sexta-feira:
"Una más, siempre! Una más - Porque no?"
(E um outro maluco me rodopiava ao som de algum rítmo latino que eu já não conseguia àquela altura diferenciar!)
Monday, February 24, 2003
Salsa é assim: 1-2-3-pára, 1-2-3-pára.
Agora guarde isto para todo o sempre, como se disso dependesse sua vida.
Parece que eu estou falando código e, de certa forma, é um código da região.
Lembre-se: um dia vc também pode estar numa boate lotada de gente balançando nesse ritmo claudicante e ali, meu amigo, quem não entra no rítmo é lentamente cuspido pra fora da boate e logo logo pra fora dos círculos sociais de Miami.
E, como já dizia o Pica-Pau "se não pode vencê-los, junte-se a eles!"
Agora guarde isto para todo o sempre, como se disso dependesse sua vida.
Parece que eu estou falando código e, de certa forma, é um código da região.
Lembre-se: um dia vc também pode estar numa boate lotada de gente balançando nesse ritmo claudicante e ali, meu amigo, quem não entra no rítmo é lentamente cuspido pra fora da boate e logo logo pra fora dos círculos sociais de Miami.
E, como já dizia o Pica-Pau "se não pode vencê-los, junte-se a eles!"
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